quinta-feira, 10 de abril de 2014

O Ator no Cinema: uma abordagem sistêmica sobre seu processo de criação


O talento de representar é aquele em que os pensamentos e sentimentos do ator são comunicados instantaneamente ao público. - Sidney Lumet

Introdução:

A realização de um filme implica a integração e interação de um conjunto de agentes especializados em áreas nas quais, em outras artes, aparecem como dominantes, mas que, no caso do cinema, são co-participantes. O que Riccioto Canudo havia previsto como o mito da arte total ao se referir ao cinema (STAM, 2003: 43) torna-se palpável nos sets de filmagem em que artistas de diferentes formações são unidos no desenvolvimento de uma obra complexa.
O fato de o cineasta tomar as decisões cruciais na realização do filme não tira a co-autoria dos outros agentes nem o caráter poético de suas funções no que tange à confecção do filme. Seguindo essa perspectiva, o que se constata é que essas interações (MORIN, 2008: 105) que compõem e moldam a realização de um filme configuram-se como sistêmicas, isto é, há um conjunto de agentes semióticos com funções específicas que interagem e se integram na realização da obra.
Esta interação entre agentes especializados e sua integração imersa à produção de um filme forma uma organização ativa – sistema – cuja matriz processual é forjada pelo jogo multiforme e relativo entre diversidade, variedade, antagonismo, desvio, ruptura, equilíbrio, ordem e desordem. Assim, uma visão holística simplificadora de que um filme seja um todo harmônico é aqui posta em xeque logo de início. Porque “(...) a ideia de sistema não é apenas harmonia, funcionalidade, síntese superior; ela traz em si, necessariamente, a dissonância, a oposição, o antagonismo” (MORIN, ibid.: 154). 
Assim, um filme não é assinado apenas por um autor, mas por um conjunto de autores, cujas especialidades complementam-se, coadunam-se e retroagem em um policircuito recursivo (MORIN, ibid.: 231), cuja dinâmica opera em torno de concessões, cooperações e associações entre as competências participantes. De fato, essa unidade complexa do cinema depende de uma eco-organização (MORIN, 2005: 35-42), cuja dimensão comporta uma natureza temporal, isto é, uma organização que se dá no tempo (VIEIRA, 2008: 93) e cuja lógica gira em torno de processos temporais, que por sua vez comportam transformações, flutuações e intersemioses.  
 Segundo Vieira (ibid.: 89), existem três parâmetros classificatórios fundamentais para se observar um sistema: sua capacidade de permanência, seu meio ambiente e sua autonomia. Ainda dentro dessa perspectiva, para um sistema consolidar-se como tal, existem parâmetros chamados hierárquicos ou evolutivos, isto é, dependentes do fator tempo para se estabelecer, delineados da seguinte forma: composição, conectividade, estrutura, integralidade, funcionalidade e organização, todos permeados por um parâmetro que pode surgir desde o primeiro estágio: a complexidade. Assim, um sistema é caracterizado por seu processo temporal e sua capacidade de crescimento e desenvolvimento. A complexidade de tal movimento temporal se dá pela diversidade de conexões que são realizadas em prol da sobrevivência do sistema.
No caso do cinema, um processo similar pode ser visto na realização e produção de um filme. Dada a necessidade desses agentes especializados, que são postos em conjunto para trabalharem em prol da realização de uma obra cinematográfica, o que há nesse ambiente é um processo temporal que demanda evoluir por cada parâmetro hierárquico apontado anteriormente. Este reflete-se na capacidade de permanência, isto é, na capacidade de se atingir uma regularidade – redundância (VIEIRA, ibid.: 92) – na construção fílmica, que pode ser constatado no filme finalizado. Pois, um filme não é feito de forma linear, mas por partes que se juntam na fase de pós-produção e finalização. Assim, ao fim e ao cabo, um filme tem que apresentar uma autonomia, em que tudo se conecta de forma coesa e coerente: direção de arte, direção de fotografia, cenografia, figurino, roteiro, direção, planos, montagem etc.
Aliás, os parâmetros de coesão e coerência são também parâmetros de consolidação de um sistema. A coesão lida com a sintaxe entre elementos, sua articulação e efetividade. A coerência lida com a semântica que se desenvolve em prol de uma dialogia intersemiótica entre esses elementos para a construção de sentido entre os mesmos, em um todo integrado, complexo e significativo.
O que se observa é que há, em graus maiores ou menores, o risco de essa combinação entre agentes e especialidades entrar em processo de entropia (MORIN, ibid.: 94), perdendo a coesão sintática e a coerência semântica, prejudicando as interfaces e intercâmbios intersemióticos entre suas várias camadas de significação. Essas camadas de significação são cunhadas e entrelaçadas pela integralidade e organização da direção de fotografia, direção de arte, figurino, cenografia, trilha sonora, roteiro, direção etc., dentro de um todo complexo, o filme.
De fato, a riqueza organizacional de um sistema é medida pela sua diversidade e variedade, pois sua lógica é pautada pela transformação, geração e produção, ou como Morin destaca: as interações e associações – entre essas áreas distintas inerentes ao processo de realização cinematográfica – “se entreproduzem” (MORIN, ibid.: 202). Assim, o efeito da entropia seria o de uma homogeneização do sistema, a perda do múltiplo e da diferença. Portanto, o colapso do sistema, pois a “organização de um sistema é a organização da diferença” (MORIN, ibid.: 149).
Portanto, ao fim, a poética desenvolvida no cinema é confeccionada nesse jogo ontológico sistêmico das interações entre agentes semióticos responsáveis por comporem um todo múltiplo e cooperativo (MORIN, ibid.: 147). Assim, cada agente, em sua especialidade, é responsável por um fragmento sígnico que passa pelo crivo de sua criação, desenvolvimento e produção. Esse fragmento tem que: a) conectar-se; b) traçar relações; c) estruturar-se, isto é, estabelecer e fortalecer essas relações intersemióticas – de troca – ao longo do período de realização fílmica; d) integrar-se a outras partes sígnicas em um processo de complementaridade; e) cumprir uma função, visando uma cooperação mútua e interdependente; f) e corporificar-se em uma organização (ou organicidade) coesa o suficiente que consiga desenvolver uma regularidade pragmática durante todo o processo de realização do filme. De fato, uma fotografia, um figurino, uma direção de arte, por exemplo, integram-se e tomam corpo pela complexidade com que dialogam entre si, pelas interfaces e intercâmbios sígnicos que são capazes de realizar e, principalmente, manter e entreproduzir, portanto, transformar (MORIN, ibid.: 148).
O que faz essa multiplicidade de agentes funcionarem em uma unidade complexa e inter-atuante é aquilo que Aumont chama de ideia do filme, que o cineasta tem da obra ainda no início de seu processo criativo (AUMONT, 2006: 136). Nesse sentido, essa ideia coloca esses subsistemas em atividade formando um policircuito recursivo retroativo entre o todo às partes, e entre as partes ao todo. Isso quer dizer que as partes – subsistemas – retroagem recursivamente sobre o todo – o filme – e o todo, por sua vez, retroage recursivamente sobre as partes formando esse policircuito no qual as intersemioses, flutuações e transformações fazem morada (MORIN, ibid.: 228).
De fato, essa ideia desencadeia os fluxos e os multiprocessos – círculo-evoluções – entre os subsistemas e essa dialogia – entre roteiro, direção de arte, direção de fotografia, cenografia, figurino, atores, direção, montagem, trilha sonora etc. – ocorre em torno dessa ideia-chave. Essa nucleação em torno de uma ideia que move a organização é o fechamento do sistema, porém não é um fechamento total ao ambiente em que está imerso, pois a ideia nucleadora, para ter autonomia, alimenta-se de saberes – memória – aos quais essa ideia-chave está umbilicalmente conectada. Assim, a nucleação do sistema – o que implica dizer difusão de informação e a elaboração/execução de método/estratégia de performances – favorece o florescimento dos subsistemas, isto é, promove a diversidade (leia-se riqueza), provê a interdependência (leia-se complementaridades) e permite o intercâmbio (leia-se intersemioses) entre as partes e o todo neste policircuito recursivo retroativo.
Cada subsistema possui uma herança e uma memória que se torna, ao fim e ao cabo, fonte de saberes, competências e de conhecimento de articulação de linguagem (MORIN, ibid.: 210). O roteiro, herança da literatura (AUMONT, ibid.: 40) e da dramaturgia, serve de guia para a produção que se concentra em tentar trazer à superfície a história ali descrita, fazendo uma analogia, o roteiro seria a planta-baixa de um edifício que vai consumir horas e horas para ser erigido. A direção de arte (herança das artes plásticas) trata de esboçar e estabelecer os aspectos visuais sugeridos pelo roteiro e pelo diretor; o cenógrafo (herança do teatro e em alguns aspectos da arquitetura) trata de dar vida e relevo aos espaços onde a encenação será realizada; o figurinista (herança da moda e do teatro) trata de encarnar no vestuário os aspectos sociais, históricos e psicológicos dos personagens com intuito de dar dimensão a estes; o diretor de fotografia (herança da própria fotografia) trata de escrever a história ali encenada por meio da disposição e articulação das luzes, lentes e enquadramentos; o compositor da trilha sonora (herança da música) trata de contar e transmitir os sentimentos das cenas encenadas por meio da música. Ainda que inserida na pós-produção, a música tem o caráter de enaltecer e intensificar a encenação e a montagem; o diretor (herança das outras artes) é um autor complexo que possui a competência conjugada do regente, pintor, escritor, encenador, fotógrafo, arquiteto, poeta e compositor. É, sobretudo, um mediador de competências cujo discurso se desenvolve por meio da integração e consolidação de uma dialogia entre os outros agentes semióticos envolvidos no processo de criação do filme. Ele forja sua independência na e pela dependência dos especialistas envolvidos (ver MORIN, ibid.: 253). Assim, sua poética é articulada por meio de uma ecodependência, e sua plenitude criativa floresce e ganha brilho ao permeá-la de colaborações, cooperações e complementações.
Morin define um subsistema da seguinte maneira: é “(...) todo sistema que manifeste subordinação em relação a um sistema no qual ele é integrado como parte” (MORIN, ibid., 175). Assim, cada subsistema como direção de arte, roteiro, direção de fotografia, trilha sonora, direção, cenografia, figurino, montagem, atuação etc., possui uma história – memória – que advém, de uma forma ou de outra, de artes pregressas ao cinema. Portanto, cada subsistema carrega consigo uma herança semiótica que passa por transformações no meio cinematográfico. Assim, se, por um lado, essas especialidades desenvolveram as potencialidades do cinema, por outro, o meio permitiu e propiciou novos desdobramentos e novas articulações às especialidades.  
Entretanto, este circuito, formado por subsistemas cujas especialidades são postas para atuarem em conjunto, envolve um fator tempo que subjaz a todo o sistema. Assim, cada subsistema passa por fases evolutivas de maneira diferenciada e em momentos específicos durante a produção de um filme. Daí o termo círculo-evoluções,  pois o fim de um processo é o começo de um outro. Ou como Morin define é um : “(...) multiprocesso retroativo se fechando em si mesmo a partir de múltiplos e diversos circuitos (…)” (MORIN, ibid.: 231). Assim, o término do roteiro é o início da pré-produção, o fim da pré-produção é o início da produção ou filmagem, o fim deste último é o começo da montagem e da pós-produção, portanto é um policircuito retroativo recursivo, no qual os subsistemas evoluem por um processo criativo que contém fases distintas e momentos específicos. Portanto, é um policircuito retroativo recursivo, no qual os subsistemas evoluem por um processo criativo que contém fases distintas como: rompimento, preparação, incubação, expansão ou iluminação, transição ou verificação, maturação ou formulação e clímax (ver VIEIRA, 2008: 58)[1].


1. Sobre superobjetivos, improvisações e continuidades



Tão antiga quanto a representação imagética é a representação teatral, seus vínculos comuns remontam à mímica, entretanto seus caminhos diferem-se na medida que os meios de comunicação diversificaram-se e novas perspectivas e questionamentos foram desenvolvidos em cada área. Entretanto, é no cinema que esses vínculos antigos voltam a se encontrar e a se hibridizar já trazendo, todavia, toda a herança semiótica em que cada área – teatro e pintura – trilhou ao longo da história. Aliás, são os desdobramentos, transformações e articulações realizadas por dramaturgos, encenadores, atores, cenógrafos, iluminadores, pintores, em suas áreas distintas e ao longo do tempo, que vão  influir ao cinema.
O encontro entre essas artes, via poética do cinema após séculos de convivência – já que teatro e pintura nunca deixaram de dialogar entre si, pois ambas inúmeras vezes compactuaram de movimentos artísticos em contextos históricos similares – implicou metamorfoses no próprio cinema. Elementos teatrais vinculados, por exemplo, à cenografia e à iluminação foram absorvidos pela direção de arte e direção de fotografia, e, consequentemente, transformados. Elementos da pintura como o arranjo visual – composição, equilíbrio, perspectiva e forma – na construção dos quadros/planos foram também assimilados e transformados. O mesmo ocorreu com a atuação de atores e atrizes que, ao representarem para o cinema teve, a seu turno, que sofrer e impor transformações ao meio. Portanto, não foi uma metamorfose de mão única, mas sim um processo que envolveu retroações e recursividades ao longo da história. Esse processo partiu dos primeiros vaudevilles, passou pela sincronização do som e da imagem, que permitiu a troca de diálogos diretos, até chegar ao motion capture atual em que os atores são usados como base para captura de movimentos e ações para personagens digitais.
Certamente, o período do cinema mudo foi marcado pelo uso recorrente da mímica e do pastiche como forma de atuação plausível a um meio em que as falas do ator não eram capturadas. De fato, somente as ações dos corpos eram passíveis de serem utilizadas, ficando a cargo dos intertítulos esclarecer o que os atores diziam lá na tela. Nos primeiros filmes de Méliès, Porter e Hepworth, por exemplo, ainda sobre o impacto do maravilhamento da imagem em movimento, é possível encontrar o exagero como ferramenta basilar à interpretação. Entretanto, com Griffith, o exagero aos poucos vai cedendo espaço ao naturalismo e, diferentemente de uma apresentação em palco, a atuação sofre uma inflexão decisiva: a fragmentação da encenação.
Ao fragmentar a ação em partes específicas que, depois, são reordenadas pela montagem, o ator estava à mercê do produtor e/ou diretor. Era corrente no período mudo que o cinema era uma arte para atores e atrizes de pouco talento nos palcos, pois a fragmentação e o fato de se repetirem inúmeras vezes as tomadas, até chegar ao que o produtor desejava, acabava facilitando o trabalho da interpretação. Ao ator e à atriz de cinema – marcadamente hollywoodianos – desta época bastava que tivessem uma ‘boa aparência’, que seguissem à risca o que lhes pedissem para fazer, para se atingir uma “boa” atuação. Aliás, a famosa frase de Hitchcock – “atores são gado” – tem que ser entendida à luz deste contexto.
Era até comum dizer-se que o ator de cinema não sabia ao certo o que estava fazendo. Alienado de sua real função na narrativa, não compreendia o filme como um todo. Era, portanto, uma peça manipulável que servia a momentos específicos e cujo perfil era o que o estúdio desejava para ‘estrelar’ seus filmes. Como um manequim, era de fato uma mercadoria dentro do mainstream. Entretanto, generalizar tal procedimento é esquecer-se de um artista como Charles Chaplin que fez de sua atuação a pedra de toque de uma poética fílmica voltada à performance do ator.    
Por outro lado, no cinema de Eisenstein, por exemplo, em que a massa era o seu protagonista ideal, este fato não muda muito, pois existe uma clara e rígida orquestração das atuações em conformidade ao que o diretor desejava capturar. Assim, dos atores e atrizes em uma sequência como a da escadaria de Odessa, em Encouraçado Potemkin (1925), retiram-se expressões, movimentos e reações dentro do necessário para compor a ideia-conflito em torno do evento. Neste caso, é evidente que a montagem se sobrepõe a todos os atores e atrizes, pois estes são coadjuvantes, são peças que vão se arranjando e ordenando em prol de colisões e choques entre abstrações e ideologias.
Com Pudovkin – e sua maneira de extrair a força plástica expressiva da ação – esta atuação é construída em conformidade ao direcionamento que se deseja prover ao espectador. Entretanto, enquanto Eisenstein buscava as relações lógicas da montagem para explorar as atuações dos atores e atrizes, Pudovkin procurava estabelecer a montagem por meio de relações psicológicas e emotivas, eliminando o desnecessário e priorizando o fortalecimento – para o espectador – do conflito entre os heróis (PUDOVKIN apud XAVIER, 2003: 57-73). Assim, em Pudovkin, há a necessidade de um protagonista que vá adiante e mova a narrativa. Dessa forma, é uma via de mão-dupla: de um lado uma montagem que tece as relações e direciona o espectador naquilo que o diretor deseja abordar e, de outro, uma atuação que permita uma identificação cuja carga emotiva cresça ao longo da narrativa. Uma dinâmica que Pudovkin admite ter aprendido ao assistir aos filmes de Griffith e que é facilmente observada no filme O Fim de São Petersburgo (1927), por exemplo.
Talvez o expressionismo alemão tenha sido o mais teatral dos cinemas no período mudo, por causa da influência de Max Reinhardt (EISNER, 2002: 12). Este “teatral”, no caso, refere-se à necessidade do trabalho do ator/atriz no direcionamento da narrativa fílmica como um todo. Aqui não é a montagem ou a fragmentação da cena que se impõe à encenação, mas a atuação dos atores que se estabelece como prioritária. São os corpos – movimentos, reações e performances – no espaço que estabelecem a maneira como serão feitos os enquadramentos e a montagem. Murnau, em A Última Gargalhada (1924), atrela a câmera ao corpo de seu protagonista. Lang, em Metrópolis (1927), enfatiza a massa de corpos caminhando ordeiramente nos níveis inferiores da metrópole e Wiene, em O Gabinete do Dr. Caligari (1920), enaltece a maneira esguia e sorrateira de seu protagonista ao caminhar pelo ambiente. Portanto, há uma clara necessidade de se explorar a performance dos atores no espaço diante da câmera, ou seja, é a intensidade visual criada pela atuação que corrobora para a composição dos enquadramentos e da montagem.
Entretanto, é, sem dúvida, o advento da tecnologia, ao permitir a sincronização do som com a imagem no cinema, que irá favorecer, equilibrar e valorizar a performance do ator. Apesar de, a princípio, essa sincronização ter suscitado o excesso de troca de diálogos, “teatralizando” o cinema, aos poucos o que se seguiu foi o uso da “fala” do ator como ponto de inflexão à narrativa fílmica, como as vozes em off dos filmes noir, ou como base aos duplos sentidos e à ironia como nos filmes de Billy Wilder e Ernst Lubitsch,  e/ou como fonte para divergentes pontos de vista que vão se envolvendo em camadas como em Cidadão Kane (1941), de Orson Wells. 
De fato, a sincronização do som à imagem trouxe  novos efeitos de realidade que antes não eram encontrados no cinema dito mudo. Portanto, a fala do ator suscitou e forneceu dimensão, densidade e contornos “realistas” aos personagens cinematográficos, pois ora ouviam-se seus pensamentos, ora acompanhavam-se seus discursos e suas discussões, ora seus silêncios e respirações etc., isto tudo sendo intercalado e entrelaçado aos planos e à montagem. Ao invés de um ator manequim, que era guiado para esta ou aquela expressão por vezes exagerada, ilustrativa e icônica que serviria para compor uma ideia sobre o assunto em destaque, surge uma atuação interdependente, isto é, que complementa, troca, joga, interage, transforma-se em enquadramentos e em montagem, ao entrar em contato com os outros subsistemas (direção de arte, direção de fotografia, montagem, som etc.).
Isso não quer dizer que a decupagem de cena e a montagem não exercessem influência sobre o trabalho fragmentado do ator de cinema, ao contrário, sua atuação e performance eram fonte e reservatório de abordagens, aproximações, distanciamentos, inflexões e irradiações em um intercâmbio contínuo entre estes três campos distintos: plano/mise-en-scène/montagem. Nesse processo, tanto a fragmentação da ação e sua planejada montagem, quanto a performance do ator influem sobre o processo, cabendo ao diretor decidir o quanto cada um irá contribuir em relação ao todo, e o quanto o todo se impõe sobre o trabalho da atuação.   
Dentro desse processo, existiram propostas distintas ao longo do tempo como: (a) um estilo agressivo que se impõe e se entrelaça à performance visceral do ator, como em Acossado (1960), de Jean-Luc Godard; (b) um lirismo que se busca na realidade e que se amalgama à atuação de uma atriz, como em Noites de Cabíria (1957), de Federico Fellini; (c) uma estética árida e faminta pela imperfeição que se associa a atuações dissonantes entre atores profissionais e não profissionais, como em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963), de Glauber Rocha; (d) incertezas e sentidos vagos contidos e revelados pela performance de uma atriz, como em O Eclipse (1962), de Michelangelo Antonioni; (e) densidades de loucura e sensatez, contidas na natureza humana e representadas pela atuação de uma atriz, como em Persona – Quando Duas Mulheres Pecam (1966), de Ingmar Bergman.
De fato, assim como ocorre na escolha e na consolidação de sua equipe, os cineastas também se associam a atores e atrizes ao longo de suas carreiras. Isso ao ponto de a identidade de alguns cineastas fundirem-se às performances de seus atores e atrizes, como se tal poética estivesse representada pela figura desses profissionais. Entretanto, dada a maneira como uma produção cinematográfica é realizada, com cenas sendo filmadas em ordem cronológica divergente àquela vista no roteiro, a valorização desse intercâmbio entre performance e poética fílmica é ainda um ponto de intensas discussões entre extremos distintos: de um lado a mais rígida orquestração desta performance e, do outro, a abertura ao improviso total.
Entretanto, é o cineasta que guia a performance desses profissionais naquilo que almeja para as cenas e para o filme. Por outro lado, o ator traz sua parcela de contribuição, tentando dar “vida” àquele personagem que, até aquele momento, é apenas um nome cujas falas, ações e descrições estão no roteiro, em linguagem verbal. Aliás, a preparação desses profissionais às cenas e ao filme como um todo faz parte de um processo de pré-produção, sendo comum a contratação de especialistas com intuito de auxiliá-los nesse processo.
 A primeira fase – Rompimento – ocorre quando o ator entra em contato com o roteiro, para uma compreensão da estória como um todo e do próprio personagem ao qual o ator/atriz foi escalado. É comum nessa fase uma leitura corrida do roteiro com todos os atores e atrizes envolvidos. O diretor, muitas vezes, acompanha essa leitura e, ao final, explica suas impressões sobre cada personagem, a importância de determinadas cenas para determinados personagens e o que almeja “ver” em seu filme. Por outro lado, os atores e atrizes tiram suas dúvidas, contam também suas impressões sobre o que leram e a maneira como vêm seus personagens. Ao final, este primeiro diálogo serve para um start que servirá de um primeiro guia para o ator/atriz, em suas novas leituras do roteiro, perceberem o que o diretor busca.
Na fase seguinte – Preparação e Incubação – o ator estuda com todo afinco seu personagem: seu ambiente, tempo e costumes, seu papel na estória, a maneira como age, reage e fala, observa os personagens próximos e quais suas relações com estes, percebe os desdobramentos das ações deste no todo, enfim é um estudo minucioso de cada detalhe contido no roteiro que lhe permite situar, focar e entrever tal personagem. Como um leitor ávido por informação, o ator/atriz debruça-se sobre o roteiro, auscultando neste dados precisos sobre seu/sua personagem. Se tal realidade a ser representada for distante de seu dia a dia é comum que assista a filmes, leia artigos, livros e revistas sobre o assunto, encontre fotos e desenhos de tipos vinculados àquele ambiente, que busque pesquisadores, pessoas próximas àquela realidade que possam lhe dar uma ideia sobre como tal personagem possa ser, aparentar e, principalmente, pensar. De fato, a tônica dessa fase é sondar diferentes fontes para que possam lhe fornecer aproximações concisas e coerentes com o personagem. 
  Tal processo abre-lhe caminho para o passo seguinte – Expansão e Iluminação – que consiste em imaginar e sentir tal personagem em ação: falando, andando, em contato com outras pessoas e assim por diante, buscando sua atmosfera (CHEKHOV, 1986: 163). É o momento do mágico se de Stanislavsky (1999: 69) em que o ator ou atriz busca visualizar seu personagem em diferentes situações, agindo de maneiras distintas além daquilo que é relatado no roteiro. Como este personagem nasceu? Como foi sua infância? Sua convivência familiar? Seu primeiro amor? etc., é como Chekhov (ibid.: 27) salienta: “(...) você orienta e constrói sua personagem fazendo novas perguntas, ordenando-lhe que lhe mostre diferentes variações de possíveis modos de atuar (...)”. De caráter abdutivo (leia-se hipotético), tal fase é fundamentada em uma profícua exploração de possibilidades diante de um personagem que, deveras, é maior do que aquilo que é descrito no roteiro. Na verdade, o que é mostrado em um filme torna-se apenas um trecho e/ou período de uma “vida” a ser representada, não a totalidade de seus momentos. Entretanto, este pequeno lapso de tempo a ser representado em um filme deve conter, em sua brevidade, toda a dimensão e profundidade do personagem e de sua estória[2]. Portanto, aquilo que não aparece no roteiro, mas é por este sugerido, torna-se o campo de ação da imaginação do ator, cujo papel visa a fornecer elementos ainda mais densos sobre o caráter do personagem; fazer-lhe novas perguntas a la Chekhov consiste em desvendar suas camadas de complexidade.
Neste processo, o se torna-se uma ferramenta basilar para o ator/atriz aproximar-se de seu personagem:

Se é o ponto de partida, as circunstâncias dadas são o desenvolvimento. Um não pode existir sem o outro para que tenha o necessário dom do estímulo. As suas funções, entretanto, diferem um pouco. O se dá o empurrão na imaginação dormente, ao passo que as circunstâncias dadas constroem a base para o próprio se. E ambos, juntos ou em separado, ajudam a criar um estímulo interior (STANISLAVSKY, 1999: 74).
     
O momento seguinte – Transição e Verificação – consiste em descobrir o que move tal personagem ao longo da narrativa: suas crenças, hábitos e pensamentos. O que o faz tomar estas decisões e não aquelas, porque ele age desta maneira e não daquela. Assim, as possibilidades de ações restringem-se àquilo que, de fato, o personagem revela ao longo da estória. Tais restrições de ações demonstram o superobjetivo do personagem (ver STANISLAVKY, ibid.: 281-289), processo vinculado a tendências de comportamento que aquele personagem tem em determinadas situações, quando toma tais resoluções e não outras. Isto quer dizer que cada ação de um personagem está repleta de informações sobre quem ele é, o que o move, em que acredita etc. Considerando-se que o roteiro descreve as cenas e dispõe os diálogos, tal superobjetivo e objetivos menores (STANISLAVKY, ibid.: 255-262) estão no subtexto de uma fala e/ou em atitudes impulsivas, coerentes, ilógicas e estranhas de um personagem diante dos eventos em que é posto, portanto, faz parte do trabalho do ator descobrir tais tendências e motivos do personagem. Embora muitas vezes tais características estejam bem evidentes, em alguns casos, há uma obscuridade que fomenta a dúvida. De fato, quanto mais objetivos, crenças e hábitos chocarem-se internamente, mais complexo é o personagem. Todavia, tal superobjetivo pode sofrer transformações ao longo da narrativa, ocasionando uma mudança nas concepções que movem o personagem, e esta transição tem que ser muito bem desenvolvida pelo ator, pois a mudança não pode ser apenas pela fala, mas pelas atitudes.
Como Aristóteles (2005: 36) aponta: “Os caracteres permitem qualificar o homem, mas é de sua ação que depende sua infelicidade ou felicidade. A ação, pois, não se destina a imitar os caracteres, mas, pelos atos, os caracteres já são representados”. Não basta que caracteres – descrições e diálogos – encontrados no roteiro – linguagem verbal – estejam bem equacionados para o profissional, que tem de transformar as informações em atos convincentes que serão capturados pela câmera, pois o foco de interesse do cineasta é esta visualidade-sonora composta pela atuação do ator. De fato, neste estágio de Transição, é muito importante que o diretor esteja próximo ao ator e ajude-o no processo de descoberta/restrição vinculada ao superobjetivo. Esclarecer a logicidade interna do personagem em relação ao todo e onde pretende chegar com este personagem ao longo do filme é primordial ao trabalho do ator, pois fornece-lhe um princípio de continuidade (ver STANISLAVSKY, ibid.: 264) em um processo em que a fragmentação e a descontinuidade nas gravações das cenas é o usual. Aliás, Walter Benjamin (1996: 181) é esclarecedor: “Durante a filmagem, nenhum intérprete pode reivindicar o direito de perceber o contexto total no qual se insere sua própria ação.”  Portanto, definir o superobjetivo e os objetivos menores é definir os caminhos lógicos do personagem, é assentar o ator sob um direcionamento em relação à interpretação e à própria representação fílmica.
Já a fase posterior – Maturação e Formulação – é marcada por ensaios intensos em que os atores contracenam e são dirigidos pelo cineasta ou por quem os prepara para as cenas. Além de uma marcação prévia de suas ações, deslocamentos e movimentos, existe também um processo de interação entre os atores e atrizes às cenas, pois, é nessa troca entre as atuações, às vezes aberta ao improviso, que os personagens crescem, se desenvolvem e são moldados. Há, portanto, uma co-criação (ver CHEKHOV, ibid.: 40) em andamento, que se alimenta e é alimentada pelo intercâmbio das interpretações em conjunto. Atento a este processo, o cineasta vai lapidando e refinando esse crescimento, direcionando-o para o que deseja filmar. 
O ator já reconhece seu personagem, já consegue perceber sua evolução dramática e traz em si suas características nas interpretações, entretanto esta fase é marcada exatamente por testes de interpretação, por ajustes, adequações, por um detalhamento ainda mais cuidadoso e é comum que os ensaios ocorram com os figurinos, nas locações e cenários, e ainda em meio aos ajustes na iluminação, feitos pela equipe do diretor de fotografia. De fato, é um processo visando já às filmagens ou, melhor dizendo, tendo as filmagens influenciando, pois a planificação de cena e a preocupação com a sintaxe dos movimentos torna-se o foco desse processo também.
A última fase – Clímax – é a filmagem propriamente dita. Toda a preparação vinculada à preparação do ator complementa-se agora efetivamente com outros subsistemas. Quando o processo é bem executado, o ator é capaz de crescer ainda mais nas filmagens, exatamente por essa interação entre cenário, locação, figurino, iluminação, objetos de cena e outros atores e atrizes em cena. É o domínio sobre o personagem e a confiança no direcionamento dado que o faz atingir tal clímax. Seu foco é tamanho que a equipe e os equipamentos em torno nem lhe tiram a atenção. Existe, portanto, uma fluência na interpretação, ainda que o cronograma de filmagem seja aleatório, tal ator compõe, estrutura, estabelece e desenvolve um sentido de permanência muito evidente (ver STANISLAVSKY, ibid.: 269), que corrobora para uma unidade de interpretação.


Referências:

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AUMONT, JACQUES. (2006) O cinema e a encenação. Lisboa: Edições Texto & Grafia.  
BENJAMIN, Walter. (1996) Obras escolhidas I – Magia e técnica. Arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense.
BORDWELL, David. (2008) Poetics of Cinema. New York: Routledege.
CHEKHOV, Michael. (1986) Para o Ator. São Paulo: Editora Martins Fontes.
EISNER, Lotte H. (2002) A Tela Demoníaca: as influências de Max Reinhardt e do expressionismo. São Paulo: Paz e Terra, 2˚ edição.
LAWSON, John Howard. (1967) O Processo de Criação no Cinema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
MORIN, Edgar. (2008) O Método 1 – a natureza da natureza. Porto Alegre: Editora Sulina.
_____________ (2005) O Método 2 – a vida da vida. Porto Alegre: Editora Sulina.
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Este estudo teve o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - Fapesp.



[1] Seguindo os passos de Jorge Vieira ao adaptar a proposta de Moles com as propostas evolutivas ontológicas de Mende – evolon – é possível compreender melhor em que momento ocorre os processos de abertura e fechamento – a cada subsistema – tão essenciais à nucleação na realização de um filme.
2 Aliás, este é o desafio imposto a todo cineasta.

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