quinta-feira, 17 de abril de 2014

A Montagem Cinematográfica: uma abordagem sistêmica sobre seu processo de criação





O trabalho do editor é em parte antecipar e em parte controlar o processo de pensamento do público. - Walter Murch



Introdução:

A realização de um filme implica a integração e interação de um conjunto de agentes especializados em áreas nas quais, em outras artes, aparecem como dominantes, mas que, no caso do cinema, são co-participantes. O que Riccioto Canudo havia previsto como o mito da arte total ao se referir ao cinema (STAM, 2003: 43) torna-se palpável nos sets de filmagem em que artistas de diferentes formações são unidos no desenvolvimento de uma obra complexa.
O fato de o cineasta tomar as decisões cruciais na realização do filme não tira a co-autoria dos outros agentes nem o caráter poético de suas funções no que tange à confecção do filme. Seguindo essa perspectiva, o que se constata é que essas interações (MORIN, 2008: 105) que compõem e moldam a realização de um filme configuram-se como sistêmicas, isto é, há um conjunto de agentes semióticos com funções específicas que interagem e se integram na realização da obra.
Esta interação entre agentes especializados e sua integração imersa à produção de um filme forma uma organização ativa – sistema – cuja matriz processual é forjada pelo jogo multiforme e relativo entre diversidade, variedade, antagonismo, desvio, ruptura, equilíbrio, ordem e desordem. Assim, uma visão holística simplificadora de que um filme seja um todo harmônico é aqui posta em xeque logo de início. Porque “(...) a ideia de sistema não é apenas harmonia, funcionalidade, síntese superior; ela traz em si, necessariamente, a dissonância, a oposição, o antagonismo” (MORIN, ibid.: 154). 
Assim, um filme não é assinado apenas por um autor, mas por um conjunto de autores, cujas especialidades complementam-se, coadunam-se e retroagem em um policircuito recursivo (MORIN, ibid.: 231), cuja dinâmica opera em torno de concessões, cooperações e associações entre as competências participantes. De fato, essa unidade complexa do cinema depende de uma eco-organização (MORIN, 2005: 35-42), cuja dimensão comporta uma natureza temporal, isto é, uma organização que se dá no tempo (VIEIRA, 2008: 93) e cuja lógica gira em torno de processos temporais, que por sua vez comportam transformações, flutuações e intersemioses.  
 Segundo Vieira (ibid.: 89), existem três parâmetros classificatórios fundamentais para se observar um sistema: sua capacidade de permanência, seu meio ambiente e sua autonomia. Ainda dentro dessa perspectiva, para um sistema consolidar-se como tal, existem parâmetros chamados hierárquicos ou evolutivos, isto é, dependentes do fator tempo para se estabelecer, delineados da seguinte forma: composição, conectividade, estrutura, integralidade, funcionalidade e organização, todos permeados por um parâmetro que pode surgir desde o primeiro estágio: a complexidade. Assim, um sistema é caracterizado por seu processo temporal e sua capacidade de crescimento e desenvolvimento. A complexidade de tal movimento temporal se dá pela diversidade de conexões que são realizadas em prol da sobrevivência do sistema.
No caso do cinema, um processo similar pode ser visto na realização e produção de um filme. Dada a necessidade desses agentes especializados, que são postos em conjunto para trabalharem em prol da realização de uma obra cinematográfica, o que há nesse ambiente é um processo temporal que demanda evoluir por cada parâmetro hierárquico apontado anteriormente. Este reflete-se na capacidade de permanência, isto é, na capacidade de se atingir uma regularidade – redundância (VIEIRA, ibid.: 92) – na construção fílmica, que pode ser constatado no filme finalizado. Pois, um filme não é feito de forma linear, mas por partes que se juntam na fase de pós-produção e finalização. Assim, ao fim e ao cabo, um filme tem que apresentar uma autonomia, em que tudo se conecta de forma coesa e coerente: direção de arte, direção de fotografia, cenografia, figurino, roteiro, direção, planos, montagem etc.
Aliás, os parâmetros de coesão e coerência são também parâmetros de consolidação de um sistema. A coesão lida com a sintaxe entre elementos, sua articulação e efetividade. A coerência lida com a semântica que se desenvolve em prol de uma dialogia intersemiótica entre esses elementos para a construção de sentido entre os mesmos, em um todo integrado, complexo e significativo.
O que se observa é que há, em graus maiores ou menores, o risco de essa combinação entre agentes e especialidades entrar em processo de entropia (MORIN, ibid.: 94), perdendo a coesão sintática e a coerência semântica, prejudicando as interfaces e intercâmbios intersemióticos entre suas várias camadas de significação. Essas camadas de significação são cunhadas e entrelaçadas pela integralidade e organização da direção de fotografia, direção de arte, figurino, cenografia, trilha sonora, roteiro, direção etc., dentro de um todo complexo, o filme.
De fato, a riqueza organizacional de um sistema é medida pela sua diversidade e variedade, pois sua lógica é pautada pela transformação, geração e produção, ou como Morin destaca: as interações e associações – entre essas áreas distintas inerentes ao processo de realização cinematográfica – “se entreproduzem” (MORIN, ibid.: 202). Assim, o efeito da entropia seria o de uma homogeneização do sistema, a perda do múltiplo e da diferença. Portanto, o colapso do sistema, pois a “organização de um sistema é a organização da diferença” (MORIN, ibid.: 149).
Portanto, ao fim, a poética desenvolvida no cinema é confeccionada nesse jogo ontológico sistêmico das interações entre agentes semióticos responsáveis por comporem um todo múltiplo e cooperativo (MORIN, ibid.: 147). Assim, cada agente, em sua especialidade, é responsável por um fragmento sígnico que passa pelo crivo de sua criação, desenvolvimento e produção. Esse fragmento tem que: a) conectar-se; b) traçar relações; c) estruturar-se, isto é, estabelecer e fortalecer essas relações intersemióticas – de troca – ao longo do período de realização fílmica; d) integrar-se a outras partes sígnicas em um processo de complementaridade; e) cumprir uma função, visando uma cooperação mútua e interdependente; f) e corporificar-se em uma organização (ou organicidade) coesa o suficiente que consiga desenvolver uma regularidade pragmática durante todo o processo de realização do filme. De fato, uma fotografia, um figurino, uma direção de arte, por exemplo, integram-se e tomam corpo pela complexidade com que dialogam entre si, pelas interfaces e intercâmbios sígnicos que são capazes de realizar e, principalmente, manter e entreproduzir, portanto, transformar (MORIN, ibid.: 148).
O que faz essa multiplicidade de agentes funcionarem em uma unidade complexa e inter-atuante é aquilo que Aumont chama de ideia do filme, que o cineasta tem da obra ainda no início de seu processo criativo (AUMONT, 2006: 136). Nesse sentido, essa ideia coloca esses subsistemas em atividade formando um policircuito recursivo retroativo entre o todo às partes, e entre as partes ao todo. Isso quer dizer que as partes – subsistemas – retroagem recursivamente sobre o todo – o filme – e o todo, por sua vez, retroage recursivamente sobre as partes formando esse policircuito no qual as intersemioses, flutuações e transformações fazem morada (MORIN, ibid.: 228).
De fato, essa ideia desencadeia os fluxos e os multiprocessos – círculo-evoluções – entre os subsistemas e essa dialogia – entre roteiro, direção de arte, direção de fotografia, cenografia, figurino, atores, direção, montagem, trilha sonora etc. – ocorre em torno dessa ideia-chave. Essa nucleação em torno de uma ideia que move a organização é o fechamento do sistema, porém não é um fechamento total ao ambiente em que está imerso, pois a ideia nucleadora, para ter autonomia, alimenta-se de saberes – memória – aos quais essa ideia-chave está umbilicalmente conectada. Assim, a nucleação do sistema – o que implica dizer difusão de informação e a elaboração/execução de método/estratégia de performances – favorece o florescimento dos subsistemas, isto é, promove a diversidade (leia-se riqueza), provê a interdependência (leia-se complementaridades) e permite o intercâmbio (leia-se intersemioses) entre as partes e o todo neste policircuito recursivo retroativo.
Cada subsistema possui uma herança e uma memória que se torna, ao fim e ao cabo, fonte de saberes, competências e de conhecimento de articulação de linguagem (MORIN, ibid.: 210). O roteiro, herança da literatura (AUMONT, ibid.: 40) e da dramaturgia, serve de guia para a produção que se concentra em tentar trazer à superfície a história ali descrita, fazendo uma analogia, o roteiro seria a planta-baixa de um edifício que vai consumir horas e horas para ser erigido. A direção de arte (herança das artes plásticas) trata de esboçar e estabelecer os aspectos visuais sugeridos pelo roteiro e pelo diretor; o cenógrafo (herança do teatro e em alguns aspectos da arquitetura) trata de dar vida e relevo aos espaços onde a encenação será realizada; o figurinista (herança da moda e do teatro) trata de encarnar no vestuário os aspectos sociais, históricos e psicológicos dos personagens com intuito de dar dimensão a estes; o diretor de fotografia (herança da própria fotografia) trata de escrever a história ali encenada por meio da disposição e articulação das luzes, lentes e enquadramentos; o compositor da trilha sonora (herança da música) trata de contar e transmitir os sentimentos das cenas encenadas por meio da música. Ainda que inserida na pós-produção, a música tem o caráter de enaltecer e intensificar a encenação e a montagem; o diretor (herança das outras artes) é um autor complexo que possui a competência conjugada do regente, pintor, escritor, encenador, fotógrafo, arquiteto, poeta e compositor. É, sobretudo, um mediador de competências cujo discurso se desenvolve por meio da integração e consolidação de uma dialogia entre os outros agentes semióticos envolvidos no processo de criação do filme. Ele forja sua independência na e pela dependência dos especialistas envolvidos (ver MORIN, ibid.: 253). Assim, sua poética é articulada por meio de uma ecodependência, e sua plenitude criativa floresce e ganha brilho ao permeá-la de colaborações, cooperações e complementações.
Morin define um subsistema da seguinte maneira: é “(...) todo sistema que manifeste subordinação em relação a um sistema no qual ele é integrado como parte” (MORIN, ibid., 175). Assim, cada subsistema como direção de arte, roteiro, direção de fotografia, trilha sonora, direção, cenografia, figurino, montagem, atuação etc., possui uma história – memória – que advém, de uma forma ou de outra, de artes pregressas ao cinema. Portanto, cada subsistema carrega consigo uma herança semiótica que passa por transformações no meio cinematográfico. Assim, se, por um lado, essas especialidades desenvolveram as potencialidades do cinema, por outro, o meio permitiu e propiciou novos desdobramentos e novas articulações às especialidades.  
Entretanto, este circuito, formado por subsistemas cujas especialidades são postas para atuarem em conjunto, envolve um fator tempo que subjaz a todo o sistema. Assim, cada subsistema passa por fases evolutivas de maneira diferenciada e em momentos específicos durante a produção de um filme. Daí o termo círculo-evoluções,  pois o fim de um processo é o começo de um outro. Ou como Morin define é um : “(...) multiprocesso retroativo se fechando em si mesmo a partir de múltiplos e diversos circuitos (…)” (MORIN, ibid.: 231). Assim, o término do roteiro é o início da pré-produção, o fim da pré-produção é o início da produção ou filmagem, o fim deste último é o começo da montagem e da pós-produção, portanto é um policircuito retroativo recursivo, no qual os subsistemas evoluem por um processo criativo que contém fases distintas e momentos específicos. Portanto, é um policircuito retroativo recursivo, no qual os subsistemas evoluem por um processo criativo que contém fases distintas como: rompimento, preparação, incubação, expansão ou iluminação, transição ou verificação, maturação ou formulação e clímax (ver VIEIRA, 2008: 58)[1].

1. Sobre revelações, lapidações e reescritas



Muitas vezes, em paralelo à fase de filmagem – ou de produção – transcorre a fase de pós-produção vinculada à montagem (ver SMITH apud CHANG, 2011: 168). Assim, em conformidade ao andamento das filmagens, o montador – e seus assistentes – vinculado ao projeto já começa a assistir, selecionar e editar as cenas gravadas. Tal procedimento colabora para o andamento de uma produção que trafega em um mainstream impulsionado pelas datas fixas de estreia e de retorno financeiro que alavanca e mantém os estúdios norte-americanos. Em produções menos preocupadas com este retorno financeiro, ditas independentes, tal processo de montagem geralmente só se inicia ao término de todas as filmagens programadas na fase de pós-produção.
De fato, a montagem é filha da modernidade, da industrialização, da produção em massa e em série, isto é, de um processo em que um produto final é fruto do trabalho de vários agentes envolvidos. Diferentemente de um produto feito pelas mãos de um artesão, a montagem está vinculada a um modus operandi em que o trabalhador não é responsável pelo todo, e sim por um pedaço específico do produto final que, aos poucos, é construído ao longo de uma linha de produção. Tal processo tornou-se célebre pela ótica de Charles Chaplin em seu Tempos Modernos (1936) que resume, com a ironia que lhe é própria, a maneira como a modernidade e a revolução industrial transformaram o modo de se produzir, trabalhar, viver e pensar o mundo.
Como Vincent Amiel destaca, o século XX poderia ser muito bem visto não só como o século da imagem, mas das associações de imagens (2007: 09). Para este, a montagem simboliza esse século, pois foi por meio deste tipo de procedimento de construção de discurso que a comunicação audiovisual se desdobrou. Assim, desde o cinema, passando pela televisão e chegando à hipermídia, o que se viu foi a seleção, edição e montagem áudio-verbo-visual sendo utilizada em larga escala e de diferentes formas, tanto para oprimir, quanto para libertar, tanto para entreter quanto para alertar, tanto para despertar, quanto para acalentar.
De fato, a montagem está intimamente conectada à fragmentariedade perceptiva a que a metrópole sujeitou o transeunte no final do século XIX (ver BENJAMIN, 1996: 174). Tal processo de associação/justaposição sígnica, imposta e suscitada pelo ambiente, acabou gerando novas formas e formatos de comunicação, pontuados pelo fragmento em constante movimento e em variados intercâmbios. Portanto, por meio desses fenômenos comuns à metrópole, novos hábitos e novos processos de aprendizagem (semiose) foram-se configurando, isto é, foi por fluxos intensos e dinâmicos que acabou tomando corpo uma linguagem, como Singer extrai do texto de Georg Simmel: “O rápido agrupamento de imagens em mudança, a descontinuidade acentuada ao alcance de um simples olhar e a imprevisibilidade de impressões impetuosas: essas são as condições psicológicas criadas pela metrópole” (SIMMEL in SINGER, 2004: 96).
Assinale-se ainda que a industrialização, a metrópole, o consumo, a multidão e os transportes públicos suscitaram um novo ambiente que, por sua vez, gerou e pontuou novas maneiras de se organizar as informações nos meios de comunicação da época, como a publicidade, o jornalismo, o rádio e o cinema, em que a edição – seleção, escolha e definição da informação a ser transmitida – de seus conteúdos era uma praxe que estava vinculada a um perfil editorial de seus donos ou diretores. A montagem, portanto, é uma praxe moderna, pois, desde seu início, esteve associada à retirada do excesso, daquilo que não interessa, formatar um design – layout – que chame atenção e direcionar as impressões dos transeuntes que passam nas galerias,  nas bancas de jornais e nas ruas da metrópole.           
 A montagem em si é, portanto, um modo de articulação de linguagem – seja visual, sonora, verbal ou em seus hibridismos – que pode ser encontrada em outras artes e meios de comunicação e que, portanto, não está vinculada necessariamente ao cinema. Aliás, no começo do século XX, os movimentos dadaísta e cubista já demonstravam procedimentos de montagem com grande desenvoltura e êxito. Entretanto, foi no cinema que a montagem encontrou seu lugar de destaque pelo fato de esta nova arte absorver e assimilar um modo de produção não mais vinculado ao do artesão/autor/artista, mas, sobretudo, ao encontrado nas fábricas e indústrias: (a) o filme – como produto final – era fruto do trabalho particionado de vários agentes envolvidos; (b) o produtor era o dono deste filme e ditava o ritmo de sua linha de produção; (c) que, por outro lado, estava atrelada a uma rede de distribuição e exibição em massa.
Assim, é a própria tecnologia (reprodutibilidade/maleabilidade técnica), inerente ao cinema que abriu a possibilidade ao procedimento moderno industrial da montagem. De fato, foi imersa em um contexto histórico-econômico de se perceber, interpretar e mediar o mundo, a partir e por meio do lucro, que a montagem cinematográfica foi concebida e associada aos moldes dos ambientes industrializados encontrados nas fábricas. Portanto, tal procedimento deveria ser projetado para o consumo, isto é, para agradar o gosto dos espectadores. Porém, por outro lado, diferentemente da ideia burguesa do lucro, este mesmo ambiente das fábricas fez surgir seu contraponto. Assim, os construtivistas russos fundamentaram na montagem o meio pelo qual a revolução comunista poderia ser propagada. Portanto, tal procedimento deveria ser projetado para a mudança, isto é, para induzir o pensamento do operário/trabalhador/espectador contra a opressão capitalista burguesa. Dessa forma, a construção tijolo por tijolo, parte a parte, realizada pelo operário e compactuada pelo realizador, na maneira de se associar as imagens, simbolizava essa afronta ao sistema. 
No fundo, e não à toa, os ataques à montagem – principalmente a naturalista/transparente/clássica – trafegaram imersos nas críticas ao próprio capitalismo e aos seus meios de produção aos quais esse termo estava vinculado. A opacidade da Nouvelle Vague com seus saltos e rupturas ou o plano sequência do neo-realismo italiano eram uma afronta direta ao cinema industrial, montado com o intuito de se simular a realidade e com o objetivo de se construir um espetáculo que agradasse a massa.
Assim, a forma de se montar um filme sempre esteve atrelada à maneira como seu realizador/produtor/diretor via, concebia, interpretava o seu entorno, e quais as impressões que este(s) desejava(m) transmitir ao espectador. Portanto, tal processo influi por dois fatores: (a) ao procedimento de articulação dos enquadramentos e, consequentemente, a planificação/decupagem da ação, isto é, a maneira como o cineasta e sua equipe concebem, desenvolvem e exploram a confecção das imagens em movimento; (b) e à construção de discurso, isto é, como essas imagens em movimento são associadas, justapostas e organizadas posteriormente.
Na verdade, ao se cogitar ações em paralelo, com Porter e depois a fragmentação da encenação com Griffith, os realizadores descobriram na montagem uma maneira de se contar estórias no cinema, no princípio, nos moldes da linearidade do texto. Esse princípio, porém, sofreu inúmeras inflexões e transformações ao longo do tempo, tanto no caminho de se buscar sua ausência, quanto no caminho de se alcançar novas maneiras de se desenvolver tal processo, vinculando-o a experiências diversas entre as linguagens e seus hibridismos: sonoros, sonoro-visuais, sonoro-verbais, visuais, verbo-visuais e sonoro-verbo-visuais.
Como Walter Murch esclarece (2001: 52), existem inúmeras maneiras de se montar um filme e, a depender da quantidade de material bruto – tomadas e planos capturados nas filmagens – esse processo acaba sendo tão complexo e laborioso quanto o realizado nas fases de pré-produção e produção. De fato, a fase de montagem na pós-produção, face às circulo-evoluções anteriores, tem a sua dose de autonomia criativa tão crucial e importante quanto as fases predecessoras, pois a maneira de se dispor uma sequência de imagens em movimento interfere na forma como o filme é percebido, mediado e interpretado. Aliás, Kuleshov já havia ressaltado essa problemática nos anos 1920 e ela permanece até hoje. Portanto, como Justin Chang bem destaca, na introdução de seu livro Editing (2011) – dedicado a ouvir o que os montadores têm a dizer sobre o seu ofício – ao pinçar uma declaração de Tim Squyres – editor de Razão e Sensibilidade (1995), Tempestade de Gelo (1997) e O Tigre e o Dragão (2000) todos de Ang Lee –, é que, ao longo do processo de realização fílmica, a montagem é o momento em que a estória a ser contada aparece como um todo (ver CHANG, ibid.: 10). É o momento em que todos os elos – planos, sequências, cenas etc. – são postos em conexão, são integrados e organizados por uma linha narrativa. Sobretudo, é o momento em que o filme realmente se revela e se concretiza, é o momento em que o cineasta assiste ao que o espectador verá
  Uma questão recorrente é que a montagem não teria uma fórmula exata para seu desenvolvimento e articulação, a única restrição seria a questão de colocar o espectador a par da estória que está sendo contada. Entretanto, a maneira como isto se efetua, se imersa na redundância de sentido, se em conflito semântico, ou de forma aberta, exigindo do espectador que interprete da maneira como achar conveniente, fica a cargo de quem produz o filme. Assim, a seleção, a edição e a associação das imagens em movimento é um processo que: (a) ora está vinculado ao material escolhido para se abordar, isto é, é o assunto/objeto que definiria a maneira de se montá-lo; (b) ora é a própria maneira como o diretor/realizador antevê tal assunto e imprime seu traço, ou seja, é a sua personalidade que estabelece e intervém sobre o material, estilizando a montagem, e, de fato, assinando-a; (c) ora é a própria dinâmica estabelecida por um gênero – faroeste, suspense, terror, por exemplo – que estabelece a maneira de se montar as cenas e suas sequências. E, ainda assim, tais “regras”, vinculadas aos gêneros, evoluem ao longo do tempo, já que certos filmes promovem novas dinâmicas e tecem novas relações na edição das imagens em movimento que acabam reformulando-os, reprojetando-os.
Ao longo da história do cinema, a figura que mais se interessou em estabelecer uma reflexão sistemática sobre a montagem foi, sem dúvida, Sergei Eisenstein, que teorizou seis tipos de montagem: (a) a métrica, vinculada à fisicalidade da película, seu comprimento, corte e manipulação em que “(...) a tensão é obtida pelo efeito da aceleração mecânica, ao se encurtarem os fragmentos (...)” (EISENSTEIN, 2002: 79); (b) a rítmica que, com base no conteúdo específico contido dentro dos fragmentos – planos – organiza-se o ritmo da montagem (ibid.: 81); (c) a tonal que, com base no som emocional do conteúdo do fragmento, de sua dominante, a edição de imagens é arranjada. Não se atendo ao tempo lógico dos eventos capturados, mas a um tempo e a uma melodia que se impõem dada a emoção que se deseja enaltecer, sendo medido “impressionisticamente” (ibid.: 82 e 85);  (d) a atonal que contém os mesmos procedimentos da tonal, mas que, entretanto, associa-se à edição de fragmentos dissonantes que colidem entre si, evocando elementos entrópicos que geram ruídos e faíscas, isto é, esta dissonância visa não só ao desconforto, mas ao conflito entre os fragmentos justapostos (ibid.: 84-86); (e) a intelectual que possui todos os procedimentos da métrica, rítmica, tonal e atonal em conjunto. Entretanto este tipo de montagem visa a um “conflito-justaposição de sensações intelectuais associativas”, quer dizer, os elementos contidos nos fragmentos representam ideias, conceitos e teorias e são estas representações – construídas como alusões, metáforas e analogias – que são postas em choque e em conflito. É a dinâmica encontrada no pensamento dialético – tese e antítese – que é posta em ação pela montagem, cabendo ao espectador perceber e mediar esses elementos e chegar a uma síntese (EISENSTEIN, 2002: 86-87).
 Já Walter Murch, montador de filmes como Apocalipse Now (1979) e O Poderoso Chefão (1972), ambos de Francis Ford Coppola, estabelece uma regra de seis princípios básicos para um bom corte ou montagem (MURCH, ibid.: 29): (a) emoção; (b) enredo; (c) ritmo; (d) alvo de imagem; (e) plano bidimensional da tela; (f) espaço tridimensional da ação. Essa hierarquia propõe um princípio organizativo de seleção, escolha e direção, para justapor as imagens em movimento, tendo a emoção como o regente fundamental, de modo a explorar a comunhão das performances da encenação com os enquadramentos em uma sequência narrativa. Isso quer dizer que a montagem pode até inverter, reverter e reorganizar os andamentos dos eventos estabelecidos pelo roteiro, dando-lhes novas possibilidades não previstas pelo roteirista.
Dessa forma, apesar de o roteiro ser o elemento a ser respeitado a todo o momento, em uma produção, é no processo de montagem que se permite que se “reescreva” o filme e é comum retirarem-se cenas inteiras ou mesmo re-filmarem-se novas cenas a partir desta fase. Portanto, a montagem também é um ponto de partida para rearranjos estruturais vinculados ao design da estória. Entretanto, tal fato não significa que tudo possa se resolver na montagem, aliás, uma falácia recorrente vinculada ao processo. Ao contrário, a montagem só evolui, complementa, contribui com o filme, se os outros processos anteriores, atrelados à pré-produção e produção, forem/estiverem muito bem desenvolvidos e dimensionados. De fato, como pode ser observado nos depoimentos de vários montadores entrevistados por Chang e sua equipe, a montagem só é profícua e fértil se tiver um rico material para se trabalhar (ver CHANG, ibid.: 51-52, 82-84, 102-107, 155-159, 168-170, 174-176).
O trabalho do montador inicia-se – Rompimento – quando este recebe o material bruto capturado dos dias de filmagem. A partir disso, em conjunto com seus assistentes, começa a fase de decupagem – Preparação e Incubação – que consiste em assistir a todas as tomadas e planos realizados ao longo das filmagens, checando cada detalhe e já apontando o que ficou bom e o que não ficou. Tal processo permite que o montador conheça o material que tem em mãos e seu fim último é o de organizar a informação: perceber, escolher, selecionar, tecer comentários e dispor os dados referentes ao material bruto em arquivos de texto que são consultados ao longo do processo de montagem. Assim, é a partir desse processo de pesquisa que o montador consegue divisar, antever e projetar essa gama considerável de horas e horas de material captado, dispondo-a para um acesso rápido de busca o que deseja e o que procura ao longo de seu trabalho. 
Como todos os envolvidos na realização do filme, o montador lê o roteiro para que possa compreender a estória como um todo. Entretanto, esta fase de decupagem permite-lhe observar e entender também a maneira como o cineasta aborda cada cena, o que cada subsistema – atuação, direção de fotografia, direção de arte, por exemplo – contribui para cada tomada, e isso influi no trabalho do montador, pois cada elemento, contido nos planos realizados, pode gerar alternativas para se conectar as imagens em movimento produzidas nas filmagens. Quanto mais riqueza, variedade e diversidade de possibilidades em uma cena “bem filmada”, maior a dificuldade e complexidade de montá-la, mas, por outro lado, maior é a probabilidade de se conseguir uma montagem à altura do que foi desenvolvido pelos subsistemas nas fases de pré-produção e produção. E “bem filmada” não significa necessariamente quantidade de planos/tomadas por cena, ou um zelo por enquadramentos regrados a formas convencionadas e padronizadas por uma indústria do entretenimento, mas a qualidade destes em relação ao assunto/objeto abordado. O excesso pelo excesso não produz soluções criativas ao montador, é a acuidade na composição dos planos/tomadas (ver MERCADO, 2011: 01-05) que propicia uma excelente performance da  montagem. Sobre esta questão Alfred Hitchcock é taxativo:

A arrumação das imagens na tela com o intuito de expressar alguma coisa nunca deve ser prejudicada por algum elemento factual. Em nenhum momento. A técnica cinematográfica permite conseguir tudo o que se deseja, realizar todas as imagens que previmos, portanto não há nenhuma razão para se desistir ou para se instalar no compromisso entre a imagem prevista e a imagem obtida. Se nem todos os filmes são rigorosos, é porque há em nossa indústria muita gente que não entende nada de “criação de imagens(TRUFFAUT, 2004: 265).
   
 É durante essa fase – Iluminação e Expansão – que o montador começa a sondar, experimentar e descobrir a forma ideal de se construir a edição do filme em questão. É comum que o cineasta converse muito com o seu montador para exprimir suas impressões sobre cada cena. Alguns diretores têm o costume de montar ou de estar na sala de edição durante todo o processo, porém é comum também que, após transmitir suas ideias e conceitos de abordagem, este diretor deixe o montador trabalhar à vontade com o material captado.
  Na verdade, é durante esse processo inicial, abdutivo, tateante e hipotético, quando o montador encontra-se em um mar de possibilidades de associações possíveis que o filme toma forma. Daí a necessidade de o cineasta estar por perto, pois, como um químico, o montador explora as variáveis e combinatórias entre os elementos contidos nos planos e suas junções/associações. Aos poucos, como se lapidasse um material bruto, o filme acaba se “descobrindo”, como se o montador fosse o responsável por encontrar os fios soltos, dispostos nas tomadas realizadas e, em seguida, conseguisse costurar seus elos a cada cena, a cada sequência de cenas, e, consequentemente, por toda narrativa como um todo. O que se “descobre”, na verdade, é uma fluidez, se transparente, opaca ou múltipla, não importa, o fato é que o filme “escoa” e “transcorre” na sala de montagem como se não houvesse outra maneira de editá-lo a não ser daquela forma e quando isto acontece “é mágico”, segundo Stephen Mirrione (apud CHANG, ibid.: 51), editor de filmes como Traffic (2000) de Steven Soderbergh, de 21 Gramas (2003) e Babel (2006) ambos de Alejandro González Iñarritu.
A fase seguinte – Transição e Verificação – ocorre exatamente depois de se descobrir a maneira de se montar o filme em questão. Geralmente, tal fato acontece a partir da montagem de uma cena crucial ao filme como um todo. Portanto, é a partir desta estética – idealizada e transmitida pelo cineasta – encontrada e estabelecida pelo montador que se restringem as possibilidades de arranjo dos planos de agora em diante. Assim, as dúvidas referentes às variáveis de combinação, comuns à fase anterior, agora se projetam na necessidade de se equalizar uma unidade de edição, isto é, o problema não seria mais o de encontrar uma estética de montagem, mas o de perpetuar sua continuidade e de enfatizá-la ao longo de todo o filme. De fato, novos problemas estabelecem-se nesta fase, entretanto, restrições são cruciais para o entrelaçamento de todos os subsistemas envolvidos na realização fílmica, visando a uma composição narrativa unitária, complexa e autônoma.
Com o filme sendo montado aos poucos, cada cena finalizada é armazenada em locais específicos para ser alvo mais tarde de uma nova sondagem. Esta fase de sondagem – Maturação e Formulação – é pontuada pelo refinamento da montagem das cenas e/ou do conjunto destas. Aqui o que se observa é o andamento das transições entre as cenas, a permanência de uma unidade estética entre, nas e pelas cenas, havendo, portanto, uma sinergia costurando tudo, formando uma estrutura única. É o período dos reajustes, das revisões, das reformulações e das redefinições na edição. Pautado por uma diligente averiguação, realizada tanto pelo montador quanto pelo diretor, o que se busca é chegar ao fim último idealizado pelo cineasta. Quando tal ideal é alcançado, ou mesmo superado, as cenas e seus desdobramentos parecem adquirir vida. Uma autonomia é conquistada para o filme, ao ponto de este conseguir contar uma estória e propiciar um fluxo de interpretações, opiniões e discussões a partir da obra, a chamada semiose. O discurso, outrora idealizado, concretiza-se e permeia todas as relações abordadas, filmadas, tecidas e construídas. Tal fase – Clímax – se constitui no momento em que se constata uma sinergia complexa interatuante entre os enquadramentos justapostos, entre as cenas e sequências, e, consequentemente, por toda a narrativa, e esta constatação é de uma beleza estética surpreendente.


Referências:

ARISTÓTELES. (2005) Arte Poética. São Paulo: Martin Claret Editora.
AUMONT, JACQUES. (2004) As teorias dos cineastas. Campinas: Papirus Editora.
___________________ (2006) O cinema e a encenação. Lisboa: Edições Texto & Grafia.  
AUMONT, Jacques e outros. (2002) A estética do filme. Campinas: Papirus Editora.
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[1] Seguindo os passos de Jorge Vieira ao adaptar a proposta de Moles com as propostas evolutivas ontológicas de Mende – evolon – é possível compreender melhor em que momento ocorre os processos de abertura e fechamento – a cada subsistema – tão essenciais à nucleação na realização de um filme.

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