domingo, 31 de março de 2013

A Autoria Colaborativa no Cinema





O filme é uma criação da coletividade.
Walter Benjamin


A realização de um filme implica a integração e interação de um conjunto de agentes especializados em áreas nas quais, em outras artes, aparecem como dominantes, mas que, no caso do cinema, são co-participantes. O que Riccioto Canudo havia previsto como o mito da arte total ao se referir ao cinema (STAM, 2003: 43) torna-se palpável nos sets de filmagem em que artistas de diferentes formações são unidos no desenvolvimento de uma obra complexa.
O fato de o cineasta tomar as decisões cruciais na realização do filme não tira a co-autoria dos outros agentes nem o caráter poético de suas funções no que tange à confecção do filme. Seguindo essa perspectiva, o que se constata é que essas interações (MORIN, 2008: 105) que compõem e moldam a realização de um filme configuram-se como sistêmicas, isto é, há um conjunto de agentes semióticos com funções específicas que interagem e se integram na realização da obra.


Esta interação entre agentes especializados e sua integração imersa à produção de um filme forma uma organização ativa – sistema – cuja matriz processual é forjada pelo jogo multiforme e relativo entre diversidade, variedade, antagonismo, desvio, ruptura, equilíbrio, ordem e desordem. Assim, uma visão holística simplificadora de que um filme seja um todo harmônico é aqui posta em xeque logo de início. Porque “(...) a ideia de sistema não é apenas harmonia, funcionalidade, síntese superior; ela traz em si, necessariamente, a dissonância, a oposição, o antagonismo” (MORIN, ibid.: 154). 
Assim, um filme não é assinado apenas por um autor, mas por um conjunto de autores, cujas especialidades complementam-se, coadunam-se e retroagem em um policircuito recursivo (MORIN, ibid.: 231), cuja dinâmica opera em torno de concessões, cooperações e associações entre as competências participantes. De fato, essa unidade complexa do cinema depende de uma eco-organização (MORIN, 2005: 35-42), cuja dimensão comporta uma natureza temporal, isto é, uma organização que se dá no tempo (VIEIRA, 2008: 93) e cuja lógica gira em torno de processos temporais, que por sua vez comportam transformações, flutuações e intersemioses. 
 

Segundo Vieira (ibid.: 89), existem três parâmetros classificatórios fundamentais para se observar um sistema: sua capacidade de permanência, seu meio ambiente e sua autonomia. Ainda dentro dessa perspectiva, para um sistema consolidar-se como tal, existem parâmetros chamados hierárquicos ou evolutivos, isto é, dependentes do fator tempo para se estabelecer, delineados da seguinte forma: composição, conectividade, estrutura, integralidade, funcionalidade e organização, todos permeados por um parâmetro que pode surgir desde o primeiro estágio: a complexidade. Assim, um sistema é caracterizado por seu processo temporal e sua capacidade de crescimento e desenvolvimento. A complexidade de tal movimento temporal se dá pela diversidade de conexões que são realizadas em prol da sobrevivência do sistema.
No caso do cinema, um processo similar pode ser visto na realização e produção de um filme. Dada a necessidade desses agentes especializados, que são postos em conjunto para trabalharem em prol da realização de uma obra cinematográfica, o que há nesse ambiente é um processo temporal que demanda evoluir por cada parâmetro hierárquico apontado anteriormente. Este reflete-se na capacidade de permanência, isto é, na capacidade de se atingir uma regularidade – redundância (VIEIRA, ibid.: 92) – na construção fílmica, que pode ser constatado no filme finalizado. Pois, um filme não é feito de forma linear, mas por partes que se juntam na fase de pós-produção e finalização. Assim, ao fim e ao cabo, um filme tem que apresentar uma autonomia, em que tudo se conecta de forma coesa e coerente: direção de arte, direção de fotografia, cenografia, figurino, roteiro, direção, planos, montagem etc.
Aliás, os parâmetros de coesão e coerência são também parâmetros de consolidação de um sistema. A coesão lida com a sintaxe entre elementos, sua articulação e efetividade. A coerência lida com a semântica que se desenvolve em prol de uma dialogia intersemiótica entre esses elementos para a construção de sentido entre os mesmos, em um todo integrado, complexo e significativo.


O que se observa é que há, em graus maiores ou menores, o risco de essa combinação entre agentes e especialidades entrar em processo de entropia (MORIN, ibid.: 94), perdendo a coesão sintática e a coerência semântica, prejudicando as interfaces e intercâmbios intersemióticos entre suas várias camadas de significação. Essas camadas de significação são cunhadas e entrelaçadas pela integralidade e organização da direção de fotografia, direção de arte, figurino, cenografia, trilha sonora, roteiro, direção etc., dentro de um todo complexo, o filme.
De fato, a riqueza organizacional de um sistema é medida pela sua diversidade e variedade, pois sua lógica é pautada pela transformação, geração e produção, ou como Morin destaca: as interações e associações – entre essas áreas distintas inerentes ao processo de realização cinematográfica – “se entreproduzem” (MORIN, ibid.: 202). Assim, o efeito da entropia seria o de uma homogeneização do sistema, a perda do múltiplo e da diferença. Portanto, o colapso do sistema, pois a “organização de um sistema é a organização da diferença” (MORIN, ibid.: 149).


Portanto, ao fim, a poética desenvolvida no cinema é confeccionada nesse jogo ontológico sistêmico das interações entre agentes semióticos responsáveis por comporem um todo múltiplo e cooperativo (MORIN, ibid.: 147). Assim, cada agente, em sua especialidade, é responsável por um fragmento sígnico que passa pelo crivo de sua criação, desenvolvimento e produção. Esse fragmento tem que: a) conectar-se; b) traçar relações; c) estruturar-se, isto é, estabelecer e fortalecer essas relações intersemióticas – de troca – ao longo do período de realização fílmica; d) integrar-se a outras partes sígnicas em um processo de complementaridade; e) cumprir uma função, visando uma cooperação mútua e interdependente; f) e corporificar-se em uma organização (ou organicidade) coesa o suficiente que consiga desenvolver uma regularidade pragmática durante todo o processo de realização do filme. De fato, uma fotografia, um figurino, uma direção de arte, por exemplo, integram-se e tomam corpo pela complexidade com que dialogam entre si, pelas interfaces e intercâmbios sígnicos que são capazes de realizar e, principalmente, manter e entreproduzir, portanto, transformar (MORIN, ibid.: 148).


Referências:

MORIN, Edgar. O Método 1 – a natureza da natureza. Porto Alegre: Editora Sulina, 2008.
_____________ O Método 2 – a vida da vida. Porto Alegre: Editora Sulina, 2005.
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas: Papirus Editora, 2000.

VIEIRA, Jorge de Albuquerque. Ciência – Formas de Conhecimento: Arte e Ciência uma visão a partir da complexidade. Fortaleza: Gráfica e Editora, 2007.
__________________________ Teoria do conhecimento e arte – Formas de Conhecimento: Arte e Ciência uma visão a partir da complexidade. 2° edição. Fortaleza: Gráfica e Editora,, 2008.
__________________________ Ontologia – Formas de Conhecimento: Arte e Ciência uma visão a partir da complexidade. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2008. 

Trecho resumido e retirado da Tese "Poética Fílmica - o exemplo de Alfred Hitchcock", pág. 61-70, 2012. Tese publicada na Biblioteca Sapientia: http://www.sapientia.pucsp.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=15227