sábado, 30 de março de 2013

O Olhar de Cineasta


O que primeiro chama a atenção quando se fala de cinema é a linguagem visual, isto é, a imagem em movimento. Mas enquanto o campo visual do plano tem bordas, o mundo visual não as tem (SANTAELLA, 2001, p. 185). Assim, o primeiro desafio imposto aos realizadores foi o de adaptarem-se ao espaço retangular do fotograma/câmera do cinematógrafo, isto é, tiveram que escolher o que enquadrar e o que selecionar no mundo. Tal qual o pintor e o fotógrafo, o cineasta teve que aprender onde focar sua atenção, pois, na realidade, tudo é visivelmente contínuo, isto é, o mundo estende-se para trás de nossas cabeças e à frente de nossos olhos (SANTAELLA, 2001, p. 186). Logo, a visão da câmera é um recorte retangular do mundo determinado pelo espaço retangular do fotograma (ou uma série de fotogramas), portanto, é um fragmento do objeto externo. A relação direta entre câmera e mundo faz-se por essa forma fragmentada, logo, reduzida, de se olhar. Assim, o que a câmera capta é apenas uma face delimitada da realidade.


Dessa forma, esse olhar de cineasta (ver MERCADO, 2011, p.1-5) que se aprimora por meio da câmera, é o resultado de uma mediação entre esse espaço do plano/composição e o mundo que aparece à frente. E é exatamente para superar esse fato – o olhar limitado – que o cineasta aprende a capturar a realidade através das delimitações do plano, assim, o “enquadrar” um objeto requer um refinamento de um olhar fragmentado, de espaço reduzido, delimitado, fazendo com que esse “olhar”, em meio à imensidão de imagens possíveis que a realidade apresenta durante todo o tempo, seja distinto, seja particular. Isso se dá a tal ponto que distinguimos um cineasta de outro pelo modo de articular esses enquadramentos em uma história. Portanto, não vem do acaso, a clássica imagem do diretor com os braços esticados, as pontas dos polegares juntos e os indicadores em paralelo, pois isso se assemelha precisamente ao trabalho de recorte da câmera.


De fato, saber compor um plano, de tal forma que consiga representar a ação, requer um olhar poético que, por um fragmento de ângulo e de tempo, forme, em uma imagem em movimento, o todo do argumento, do conceito, isto é, da ideia geral – nucleadora – envolvida. Portanto, tal olhar poético traz em si um caráter de síntese, mediado pelo cineasta e pelo diretor de fotografia e sua equipe, pois os fluxos, os movimentos, os ritmos e as progressões dos objetos diante da câmera requerem do cineasta a capacidade de perceber as interações, interrelações e camadas, nos espaços e tempos de cada – e em cada – elemento em jogo, isto é, em cena.


Em seu estado primevo - na busca por um perfil estético idealizado - esse olhar configura-se exatamente por um estado de pura hipótese à procura de um certo tipo de olhar de cineasta defendido por Gustavo Mercado (2011). Não são planos propriamente ditos, mas um processo de lapidação e aprimoramento do olhar. De fato, são esboços de planos ainda não definidos, não atualizados, não corporificados. Portanto, são imagens que gozam da liberdade de serem livres e espontâneas, que se formam na mente em um jogo de planos possíveis para uma cena, para um filme. Dessa forma, são criações imagéticas mentais que testam as diferentes variações de ângulos ao filmar uma ideia, um roteiro, uma situação, um argumento.


Pode ser definido tal qual Aristóteles (2005, p. 63) enfatizou ao dizer que o poeta tem que proceder como se a cena decorresse diante de seus olhos, pois, vendo as coisas plenamente iluminadas, como se estivesse presente, pode encontrar o que convém, não lhe escapando nenhum pormenor contrário ao efeito que pretende produzir. Ou pode ainda ser forjado inclusive no momento em que o cineasta observa a encenação de seus atores no cenário e na locação de filmagem. De fato, é nesse instante de formulação que o cineasta compõe sua assinatura, ou seja, é por meio desse jogo aberto de possibilidades que ele vai descobrindo as qualidades das imediações do plano e, consequentemente, a maneira como estas qualidades se integram a sua visão de mundo.

Trecho resumido e retirado da Tese "Poética Fílmica - o exemplo de Alfred Hitchcock", pág. 147-151, 2012. Tese publicada na Biblioteca Sapientia: http://www.sapientia.pucsp.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=15227
Referências:
ARISTÓTELES. Arte Poética. São Paulo: Martin Claret Editora, 2005.
MERCADO, Gustavo. The Filmmaker’s Eye. Oxford: Elsevier, 2011.
SANTAELLA, Lucia. Matrizes da linguagem e pensamento – sonora, visual, verbal. São Paulo: Editora Iluminuras, 2001.

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