É quase impossível fazer filmes sem música. Filmes precisam do cimento da música. Eu nunca vi um filme melhor sem música. Música é tão importante como fotografia. - Bernard Hermann
Introdução:
A realização de um filme
implica a integração e interação de um conjunto de agentes especializados em
áreas nas quais, em outras artes, aparecem como dominantes, mas que, no caso do
cinema, são co-participantes. O que Riccioto Canudo havia previsto como o mito
da arte total ao se referir ao cinema (STAM, 2003: 43) torna-se palpável nos sets
de filmagem em que artistas de diferentes formações são unidos no
desenvolvimento de uma obra complexa.
O fato de o cineasta tomar as
decisões cruciais na realização do filme não tira a co-autoria dos outros
agentes nem o caráter poético de suas funções no que tange à confecção do
filme. Seguindo essa perspectiva, o que se constata é que essas interações
(MORIN, 2008: 105) que compõem e moldam a realização de um filme configuram-se
como sistêmicas, isto é, há um conjunto de agentes semióticos com funções
específicas que interagem e se integram na realização da obra.
Esta
interação entre agentes especializados e sua integração imersa à produção de um
filme forma uma organização ativa – sistema – cuja matriz processual é forjada
pelo jogo multiforme e relativo entre diversidade, variedade, antagonismo,
desvio, ruptura, equilíbrio, ordem e desordem. Assim, uma visão holística
simplificadora de que um filme seja um todo harmônico é aqui posta em xeque
logo de início. Porque “(...) a ideia de sistema não é apenas harmonia,
funcionalidade, síntese superior; ela traz em si, necessariamente, a
dissonância, a oposição, o antagonismo” (MORIN, ibid.: 154).
Assim,
um filme não é assinado apenas por um autor, mas por um conjunto de autores,
cujas especialidades complementam-se, coadunam-se e retroagem em um
policircuito recursivo (MORIN, ibid.: 231), cuja dinâmica opera em torno de
concessões, cooperações e associações entre as competências participantes. De
fato, essa unidade complexa do cinema depende de uma eco-organização (MORIN,
2005: 35-42), cuja dimensão comporta uma natureza temporal, isto é, uma
organização que se dá no tempo (VIEIRA, 2008: 93) e cuja lógica gira em torno
de processos temporais, que por sua vez comportam transformações, flutuações e
intersemioses.
Segundo Vieira (ibid.: 89), existem três
parâmetros classificatórios fundamentais para se observar um sistema: sua
capacidade de permanência, seu meio ambiente e sua autonomia. Ainda dentro
dessa perspectiva, para um sistema consolidar-se como tal, existem parâmetros
chamados hierárquicos ou evolutivos, isto é, dependentes do fator tempo para se
estabelecer, delineados da seguinte forma: composição, conectividade,
estrutura, integralidade, funcionalidade e organização, todos permeados por um
parâmetro que pode surgir desde o primeiro estágio: a complexidade. Assim, um
sistema é caracterizado por seu processo temporal e sua capacidade de
crescimento e desenvolvimento. A complexidade de tal movimento temporal se dá
pela diversidade de conexões que são realizadas em prol da sobrevivência do
sistema.
No caso do cinema, um
processo similar pode ser visto na realização e produção de um filme. Dada a
necessidade desses agentes especializados, que são postos em conjunto para
trabalharem em prol da realização de uma obra cinematográfica, o que há nesse
ambiente é um processo temporal que demanda evoluir por cada parâmetro
hierárquico apontado anteriormente. Este reflete-se na capacidade de
permanência, isto é, na capacidade de se atingir uma regularidade – redundância
(VIEIRA, ibid.: 92) – na construção fílmica, que pode ser constatado no filme
finalizado. Pois, um filme não é feito de forma linear, mas por partes que se
juntam na fase de pós-produção e finalização. Assim, ao fim e ao cabo, um filme
tem que apresentar uma autonomia, em que tudo se conecta de forma coesa e
coerente: direção de arte, direção de fotografia, cenografia, figurino,
roteiro, direção, planos, montagem etc.
Aliás, os parâmetros de
coesão e coerência são também parâmetros de consolidação de um sistema. A
coesão lida com a sintaxe entre elementos, sua articulação e efetividade. A
coerência lida com a semântica que se desenvolve em prol de uma dialogia
intersemiótica entre esses elementos para a construção de sentido entre os
mesmos, em um todo integrado, complexo e significativo.
O que se observa é que há, em
graus maiores ou menores, o risco de essa combinação entre agentes e
especialidades entrar em processo de entropia (MORIN, ibid.: 94), perdendo a coesão sintática e a coerência semântica,
prejudicando as interfaces e intercâmbios intersemióticos entre suas várias
camadas de significação. Essas camadas de significação são cunhadas e
entrelaçadas pela integralidade e organização da direção de fotografia, direção
de arte, figurino, cenografia, trilha sonora, roteiro, direção etc., dentro de
um todo complexo, o filme.
De fato, a riqueza
organizacional de um sistema é medida pela sua diversidade e variedade, pois
sua lógica é pautada pela transformação, geração e produção, ou como Morin
destaca: as interações e associações – entre essas áreas distintas inerentes ao
processo de realização cinematográfica – “se entreproduzem” (MORIN, ibid.: 202). Assim, o efeito
da entropia seria o de uma homogeneização do sistema, a perda do múltiplo e da
diferença. Portanto, o colapso do sistema, pois a “organização de um sistema é
a organização da diferença” (MORIN, ibid.:
149).
Portanto, ao fim, a poética
desenvolvida no cinema é confeccionada nesse jogo ontológico sistêmico das
interações entre agentes semióticos responsáveis por comporem um todo múltiplo
e cooperativo (MORIN, ibid.:
147). Assim, cada agente, em sua especialidade, é responsável por um fragmento
sígnico que passa pelo crivo de sua criação, desenvolvimento e produção. Esse
fragmento tem que: a) conectar-se; b) traçar relações; c) estruturar-se, isto
é, estabelecer e fortalecer essas relações intersemióticas – de troca – ao
longo do período de realização fílmica; d) integrar-se a outras partes sígnicas
em um processo de complementaridade; e) cumprir uma função, visando uma
cooperação mútua e interdependente; f) e corporificar-se em uma organização (ou
organicidade) coesa o suficiente que consiga desenvolver uma regularidade
pragmática durante todo o processo de realização do filme. De fato, uma
fotografia, um figurino, uma direção de arte, por exemplo, integram-se e tomam
corpo pela complexidade com que dialogam entre si, pelas interfaces e
intercâmbios sígnicos que são capazes de realizar e, principalmente, manter e
entreproduzir, portanto, transformar (MORIN, ibid.: 148).
O que faz essa multiplicidade
de agentes funcionarem em uma unidade complexa e inter-atuante é aquilo que
Aumont chama de ideia do filme, que o cineasta tem da obra ainda no
início de seu processo criativo (AUMONT, 2006: 136). Nesse sentido, essa ideia coloca esses
subsistemas em atividade formando um policircuito recursivo retroativo entre o
todo às partes, e entre as partes ao todo. Isso quer dizer que as partes –
subsistemas – retroagem recursivamente sobre o todo – o filme – e o todo, por
sua vez, retroage recursivamente sobre as partes formando esse policircuito no
qual as intersemioses, flutuações e transformações fazem morada (MORIN, ibid.:
228).
De
fato, essa ideia desencadeia os fluxos e os multiprocessos – círculo-evoluções
– entre os subsistemas e essa dialogia – entre roteiro, direção de arte,
direção de fotografia, cenografia, figurino, atores, direção, montagem, trilha
sonora etc. – ocorre em torno dessa ideia-chave. Essa nucleação em torno de uma
ideia que move a organização é o
fechamento do sistema, porém não é um fechamento total ao ambiente em que está
imerso, pois a ideia nucleadora, para
ter autonomia, alimenta-se de saberes – memória – aos quais essa ideia-chave
está umbilicalmente conectada. Assim, a nucleação do sistema – o que
implica dizer difusão de informação e a elaboração/execução de
método/estratégia de performances – favorece o florescimento dos subsistemas,
isto é, promove a diversidade (leia-se riqueza), provê a interdependência
(leia-se complementaridades) e permite o intercâmbio (leia-se intersemioses)
entre as partes e o todo neste policircuito recursivo retroativo.
Cada subsistema possui uma
herança e uma memória que se torna, ao fim e ao cabo, fonte de saberes,
competências e de conhecimento de articulação de linguagem (MORIN, ibid.: 210).
O roteiro, herança da literatura (AUMONT, ibid.: 40) e da dramaturgia, serve de
guia para a produção que se concentra em tentar trazer à superfície a história
ali descrita, fazendo uma analogia, o roteiro seria a planta-baixa de um
edifício que vai consumir horas e horas para ser erigido. A direção de arte
(herança das artes plásticas) trata de esboçar e estabelecer os aspectos
visuais sugeridos pelo roteiro e pelo diretor; o cenógrafo (herança do teatro e
em alguns aspectos da arquitetura) trata de dar vida e relevo aos espaços onde
a encenação será realizada; o figurinista (herança da moda e do teatro) trata
de encarnar no vestuário os aspectos sociais, históricos e psicológicos dos
personagens com intuito de dar dimensão a estes; o diretor de fotografia
(herança da própria fotografia) trata de escrever a história ali encenada por
meio da disposição e articulação das luzes, lentes e enquadramentos; o
compositor da trilha sonora (herança da música) trata de contar e transmitir os
sentimentos das cenas encenadas por meio da música. Ainda que inserida na
pós-produção, a música tem o caráter de enaltecer e intensificar a encenação e
a montagem; o diretor (herança das outras artes) é um autor complexo que possui
a competência conjugada do regente, pintor, escritor, encenador, fotógrafo,
arquiteto, poeta e compositor. É, sobretudo, um mediador de competências cujo
discurso se desenvolve por meio da integração e consolidação de uma dialogia
entre os outros agentes semióticos envolvidos no processo de criação do filme.
Ele forja sua independência na e pela dependência dos especialistas envolvidos
(ver MORIN, ibid.: 253). Assim, sua poética é articulada por meio de uma
ecodependência, e sua plenitude criativa floresce e ganha brilho ao permeá-la
de colaborações, cooperações e complementações.
Morin define um subsistema da seguinte
maneira: é “(...) todo sistema que manifeste subordinação em relação a um
sistema no qual ele é integrado como parte” (MORIN, ibid., 175). Assim, cada
subsistema como direção de arte, roteiro, direção de fotografia, trilha sonora,
direção, cenografia, figurino, montagem, atuação etc., possui uma história – memória
– que advém, de uma forma ou de outra, de artes pregressas ao cinema. Portanto,
cada subsistema carrega consigo uma herança semiótica que passa por
transformações no meio cinematográfico. Assim, se, por um lado, essas
especialidades desenvolveram as potencialidades do cinema, por outro, o meio
permitiu e propiciou novos desdobramentos e novas articulações às
especialidades.
Entretanto, este circuito, formado por
subsistemas cujas especialidades são postas para atuarem em conjunto, envolve
um fator tempo que subjaz a todo o sistema. Assim, cada subsistema passa por
fases evolutivas de maneira diferenciada e em momentos específicos durante a
produção de um filme. Daí o termo círculo-evoluções, pois o fim de um processo é o começo de um
outro. Ou como Morin define é um : “(...) multiprocesso retroativo se
fechando em si mesmo a partir de múltiplos e diversos circuitos (…)” (MORIN,
ibid.: 231). Assim,
o término do roteiro é o início da pré-produção, o fim da pré-produção é o
início da produção ou filmagem, o fim deste último é o começo da montagem e da
pós-produção, portanto é um policircuito retroativo recursivo, no qual os
subsistemas evoluem por
um processo criativo que contém fases distintas e momentos específicos. Portanto,
é um policircuito retroativo recursivo, no qual os subsistemas evoluem por um processo criativo que
contém fases distintas como: rompimento,
preparação, incubação, expansão ou iluminação, transição ou verificação,
maturação ou formulação e clímax (ver VIEIRA, 2008: 58)[1].
1.
Sobre paisagens sonoras, sentimentos e melodias
A trilha sonora ou a música,
que acompanha a narrativa cinematográfica, tem como delimitador – ou cadência –
o próprio ritmo do drama na montagem. Ritmo é um conceito que vem da linguagem
sonora e que é aqui utilizado para explicar a organização e as articulações da
sintaxe dos planos pela montagem. Isso porque a ação capturada e articulada
pela associação dos enquadramentos está impregnada de movimento, e este
movimento possui um ritmo, que pode ser explorado, subtraído, acelerado,
pausado, desacelerado etc., conforme a intervenção da montagem, pois toda
narrativa está banhada e pontuada por ritmo(s). Assim, a encenação
flagrada/captada tem uma cadência dramática com relaxamentos, acentos, impulsos
e ênfases dentro de uma temporalidade. De fato, dependendo da maneira como o
cineasta aborda e desenvolve as cenas, tais cadências dramáticas, dispostas nas
imagens em movimento justapostas, acabam configurando um ritmo ou uma variedade
de ritmos (SANTAELLA, 2001: 169).
A
trilha sonora utiliza-se desse ritmo – idealizado, configurado e desenvolvido
na montagem – para traçar sua temporalidade, relacionando-se aos eventos
dramáticos, transformando a visualidade em música, isto é, traduzindo os
gestos, as ações, os movimentos e tensões em progressões melódicas (SANTAELLA,
ibid.: 174) condizentes e/ou antagônicas ao que está sendo mostrado. A música,
portanto, está conectada à narrativa, vai lidar com a sucessão dos fatos em que
os personagens estão inseridos. Porém, seu papel está em manter e sugerir uma
sequencialidade e uma continuidade de sentimento (ver PEIRCE, 1998: 263), sentimento que está impregnado na composição
visual, mas que, com a melodia de uma música, espraia-se para além da tela.
Mantém na mente aquilo que não pode, apenas pela visualidade, ser mostrado, mas
que, pela trilha sonora, pode ser sugerido e, talvez, sentido. Assim, o
sentimento com que os personagens, lá na tela, estão envolvidos pode, pela
sucessividade das notas de uma melodia, ser sugerido ao espectador.
Herança
da música, a trilha sonora traz ao cinema todo o arcabouço – memória – de
séculos de escolas, movimentos, autores, gêneros e estilos diversos. Seu raio
de ação é variado e depende da maneira como o cineasta a vê em seu filme, pois
a música feita para o cinema tem como característica principal o fato de, por
meio de suas notas, representar o universo fílmico abordado, como se as
intensidades, os enfoques e os dramas retratados e/ou representados no filme
tivessem um correspondente à altura, via linguagem musical. Quando o compositor
consegue tal nível de identificação/complementação entre trilha sonora e filme,
um simples tocar de uma melodia faz evocar cenas inteiras à mente do
espectador, o faz “reviver” as emoções outrora sentidas ao longo do filme. Por
isso mesmo, seu emprego no cinema muitas vezes esteve em torno de mistério (ver
BERCHMANS, 2006: 15), pois de alguma maneira sabia-se que a música produzida
para os filmes tinha o poder de intensificar ainda mais as “vivências” dos
personagens na tela com o espectador.
De fato, o som no cinema tem que ser
percebido da mesma maneira que a imagem. Sua composição representa mais do que
apenas um sincronismo com os eventos capturados pelos enquadramentos, pois, da
mesma maneira como a composição da imagem passa pelo crivo de um processo de
criação criterioso em termos de luz, disposição dos objetos, encenação,
perspectiva, leitura do quadro e deslocamento em paralelo ou em conjunto à ação
etc., o som também demanda uma composição que vise a uma ambientação ao
universo fílmico em destaque.
Assim,
a construção da paisagem sonora (ver
SCHAFER, 1997: 366) em um filme tece relações muito mais tênues com a imagem.
Entretanto seu impacto semiótico. atribuído a sua facilidade de sugestão, pode
ser mais intenso e dinâmico que muitos enquadramentos em sucessão.
Primeiramente, a
linguagem sonora é, prioritariamente, icônica. Pois, enquanto “(...) no
percepto visual, por exemplo, a sensação de externalidade, de algo que está lá,
fora de nós, diferente de nós, é proeminente, no som, o senso de alteridade e
externalidade tende a dissipar-se na fusão icônica entre o som físico e o som
percebido” (SANTAELLA, 2001: 111).
A junção da composição visual
com a composição sonora trouxe uma complexidade importante para montagem.
Enquanto a ação é fragmentada em diversos planos, o som, ao contrário, é
contínuo, só cessando quando se muda de local e espaço[2].
Portanto, o som cria uma ambiência,
isto é, uma paisagem que se amalgama
com os planos justapostos. De fato, ao mesmo tempo, o que se cria é um enlace
entre o som na tela e o som que o público sente. Assim, qualquer alteridade é
dissolvida, isto é, aquele universo fílmico, no qual aqueles personagens estão
inseridos, é compactuado pelo espectador pelo áudio, nada separa os dois, não
há um delimitador, há uma imersão sugerida pelos sons daquele ambiente mostrado
pelas imagens. Dessa maneira, a alteridade que reside na imagem na tela
desvanece-se pelo e no som. Portanto, por meio do som, o público compactua com
o mesmo ambiente sonoro que há na tela. Como Santaella destaca (ibid.: 109): “O
som físico que está lá, fora de mim, é sentido como se estivesse brotando aqui
dentro, volátil, instável, movendo-se no passo da vida.”
O
som está conectado à imagem, ao plano e sua sucessão no cinema, mas, apesar
dessa conexão diádica, o som tem um poder de sugestão que vai além do que está
na tela. De fato, a linguagem sonora vai
preencher os vazios que a imagem fragmentada da montagem possui. Em um processo
de simbiose, as imagens em sucessão e o som nutrem-se, produzindo um efeito que
vai agir diretamente na consolidação do espaço fílmico muitas vezes não
mostrado em sua totalidade pelos enquadramentos, mas sugerido pelo som.
Portanto, é o som que favorece a imersão do espectador ao filme, pois a
capacidade do som em sugerir e acionar a imaginação do espectador é tão
profícua que basta que o cineasta dê alguns detalhes com as imagens e
desenvolva o áudio, criando uma ambientação sonora coerente, para que o
espectador logo interprete o entorno como sendo pertencente a uma cidade, a uma
floresta, a um deserto, a um país de uma determinada região etc. Da mesma
maneira, dado o alto grau de falibilidade, tal interpretação pode ser logo
colocada em xeque fazendo com que o espectador refaça seu raciocínio ao longo
da narrativa.
A
música no cinema banha o espectador
daquele universo fílmico apresentado/representado/capturado pelo cineasta,
assim, os sentimentos, encarnados em
ações (ARISTOTELES, 2005: 36), impressos nas imagens em movimento e articulados
pela montagem, são transformados em linguagem musical. Esta tênue
complementação tem a potencialidade de trazer o espectador para o filme, dada a
continuidade dos eventos impregnados de intensidades dramáticas, traduzidas em
notas musicais, melodias, temas e composições dispostas ao longo da narrativa.
É
esta continuidade de sentimento
sugerida pela música e atrelada à narrativa fílmica que penetra na mente do
espectador (PEIRCE, 1998: 263), fazendo brotar sentimentos voláteis e
evanescentes, porém em momentos precisos e específicos ao longo da
temporalidade fílmica, em gradações e em graus dinâmicos recursivos e
retroativos, pois, tais sentimentos, para serem acionados, precisam ser
articulados no tempo, e esta poderosa associação, entre continuum de sentimento e narrativa fílmica, conforme as palavras
de Peirce (ibid.: 264): “(...)
tem de ser vivida no tempo; nem pode qualquer tempo finito abarcá-la na sua
totalidade.” Assim, “(...)
os sentimentos instantâneos fluem em conjunto num continuum de
sentimento, o qual adquiriu generalidade e possui, num grau modificado, a
vivacidade peculiar de sentimento” (PEIRCE, ibid.: 263). Portanto, é a
interrelação temporal e contínua – entre trilha sonora e narrativa fílmica –
projetada, isto é, alimentada, encadeada, alicerçada em andamentos específicos
e em ressonância à composição visual, que tece a dinâmica necessária para se
ativar os estados do sentir. Santaella (2001: 83) esclarece:
(...) as indicações de
andamento como allegro, piano, moderato
têm relação com certos estados de espírito. Essas formas expressivas evocam
emoções porque provavelmente as diferentes cadências e ritmos, os tons graves e
agudos, os diferentes coloridos ou timbres dos instrumentos apresentam
correspondências com os ritmos vitais, sensações viscerais e pulsações
biológicas que são também diferentes, mais rápidas ou mais lentas, dependendo
de estarmos sentindo alegria ou desgosto, euforia ou tédio, placidez etc. Sob
esse aspecto, a música provoca aquilo que chamo de emoção instintiva,
ressonância, correspondências que são atraídas por semelhança de pulsação. Em
suma, há ritmos sonoros que apresentam correspondências com os ritmos
biológicos que acompanham diferentes estados do sentir.
Quando o músico compositor recebe – Rompimento – a encomenda de produzir a
trilha sonora original para um filme, um dos primeiros passos é apontar a este
profissional a visão do cineasta diante do filme como um todo. Neste contato, o
que se estabelece então é o conceito musical idealizado pelo diretor (ver
BERCHMANS, ibid.: 28). A partir daí, uma franca pesquisa se inicia – Preparação e Incubação –, assim, por
meio de referências musicais, muitas vezes até já dispostas na edição de
imagens, o diretor transmite suas ideias para que o compositor compreenda as
ênfases buscadas a cada cena.
Com isso em mãos, o compositor começa a
decupar as cenas editadas: tempo, ritmo, intensidade, contexto, texto e
subtexto. Assim, o que se define são os momentos exatos em que a música se
inicia, evolui e fecha (ver BERCHMANS, ibid.: 30-31). Cada trecho, às vezes de
dez segundos ou cerca de minutos, é estipulado, divisado e pontuado. Esta
métrica, ditada pela montagem, fornece ao compositor seu raio de ação ao longo
da narrativa, cabendo-lhe compor nos tempos, na cadência e nos momentos
desenvolvidos pela sintaxe visual.
A fase seguinte – Expansão e Iluminação – é o momento em que o músico inicia seu
processo abdutivo. É o momento em que a música do filme começa a aparecer aqui
e ali, conforme a sequência de notas ou canção vai surgindo, um novo colorido é
nuançado, as cenas adquirem contornos expressivos não vislumbrados. Como
hipóteses, trechos, períodos, progressões vão se acomodando, tateantes,
hesitantes, encontram-se, dispersam, retornam, irradiam e amalgamam-se. Como se
os estados de espírito dos personagens nas cenas estivessem aos poucos migrando
para a melodia, como se o não dito encontrasse sua linguagem perfeita na e pela
música. Sobre esse processo Fellini (2000: 213) relata:
Posso passar dias inteiros com
Nino [Rota], ouvindo-o ao piano, na tentativa de encontrar uma música, de
tornar clara uma frase musical, de modo a coincidir da maneira mais exata
possível com o sentimento, a emoção que quero expressar naquela sequência.
Após a descoberta da música, que serve de
base ao filme, ocorre um processo de adequação – Transição e Formulação – de temas que flertam, retomam, aludem,
sugerem a trilha sonora principal. Estes temas são versões variadas da melodia
base e servem para diferentes cenas, sobretudo, àquelas cujas pontuações
dramáticas divergem do estado de espírito ao qual a trilha sonora principal
evoca. Assim, fugindo da monotonia ao longo da narrativa, os temas circundam a
música-base e tecem um fluxo sonoro cujos feixes flutuam, ora enfatizando um
estado do sentir, ora explorando outro. Tal dinâmica é importante para
enaltecer a trilha sonora principal, pois, quando esta surge, parece que sempre
esteve lá, nos interstícios dos outros temas, esperando seu momento, que,
quando sobreposto aos outros e em cenas chave, mostra-se tão envolvente e
impactante que se torna memorável.
A fase seguinte – Maturação e Formulação – configura-se no momento de refinamento das
composições musicais por meio do processo de mixagem. Aqui o músico está junto
a um engenheiro de som e sua preocupação é equalizar os instrumentos, dosar os
graves e os agudos, pinçar o que ficou ruim e tentar sondar alternativas,
chamar alguns músicos para regravar os trechos necessários, testar novas
nuances, timbres, movimentos e abordagens à música-base e aos seus temas. Este
lapidar é importante, pois é o momento de construção da textura do som como um
todo. Tal processo influi na configuração da paisagem sonora e são esses relevos, climas e ambiências que banham o espectador naquele universo
fílmico projetado na tela.
Quando a trilha sonora está equalizada à
montagem, um processo de simbiose se estabelece. Tal estágio – Clímax – abriga não apenas
correspondências, ressonâncias e complementações entre as composições sonoras e
visuais, mas, sobretudo, uma integração múltipla temporal interatuante entre
estas duas esferas. Assim, como se uma não “vivesse” sem a outra, tais sintaxes
se amalgamam, forjam uma cumplicidade, moldam uma ecologia, projetam ao
espectador uma diversidade pontuada por uma unidade, configuram, sobretudo, uma
autonomia, uma identidade, uma permanência, uma continuidade e uma riqueza
semântica pela e nas suas associações, interações e junções. Como Bernard
Hermann (apud BERCHMANS, 2006: 22)
enfatiza: “É quase impossível fazer filmes sem música. Filmes precisam do
cimento da música. Eu nunca vi um filme melhor sem música. Música é tão
importante como fotografia.”
De fato, tão importante quanto as imagens
em movimento são os sons que acompanham, enaltecem e ampliam-nas. O designer de
som e o sonoplasta são os responsáveis não só por tratarem os sons em
conformidade às ações nas imagens, mas por compor, projetar e arquitetar a
representação sonora de um filme. Em mercados, em que a segmentação nas funções
é acentuada, como em Hollywood, o designer de som é o responsável por criar os efeitos sonoros para
representarem ações e objetos existentes apenas na realidade ficcional
apresentada pelo filme. É exatamente por isso que tal profissional é necessário
em filmes de ficção-científica, de fantasia e de terror, já que estes são
impregnados de elementos que, muitas vezes, não possuem correspondência ou
referência na realidade, mas que, entretanto, precisam de sons críveis aos
elementos visuais apresentados para o filme, como naves espaciais, alienígenas,
dinossauros etc. Já o sonoplasta é o responsável por desenvolver sons compatíveis com as ações nas imagens em movimento,
por exemplo, sons de passos, de copos tilintando, de socos e pontapés, de bater
de asas e assim por diante. Seu papel é, então, o de cobrir as ações dos
elementos visuais mostrados nas imagens com os sons correspondentes aos mesmos,
criando um sincronismo entre imagem e som. Em alguns filmes ainda existe a
figura de um supervisor de áudio que cuida da dublagem dos diálogos, caso estes
não estiverem bem captados ao longo das filmagens. Entretanto, em mercados, em
que não existe essa segmentação e especialização, o editor de som assume as
três funções.
Como
Michel Chion aborda (2008: 79), o som de um filme difere do som da realidade,
pois, desde a sua captação ao seu tratamento, existem inúmeras intervenções que
o transformam: como a qualidade do microfone utilizado nas filmagens; o
armazenamento dos dados de áudio; a manipulação deste áudio digitalizado em softwares específicos; a criação e o
desenvolvimento de junções de sons que visem a “encorpar” e a ampliar os
eventos capturados nas imagens em movimento; o refinamento do som dos diálogos
por meio do processo de dublagem; a gravação e tratamento da voz em off ou voz de um narrador que pode
pertencer ou não ao universo fílmico representado; a mixagem destes sons em
multipistas equalizando-os em conformidade ao espaço encontrado às salas de
exibição; e, por último e não menos importante, o enlace final entre os sons
com a trilha-sonora podendo acontecer de inúmeras maneiras: harmônica,
contrapontística, ruidosa, dissonante etc.
O editor de som trabalha
tanto com o som capturado pela equipe responsável pelo chamado som direto, isto
é, captado nos sets de filmagens, quanto com um banco de dados de sons de
variadas fontes e origens concernentes a uma gama de texturas, timbres e
modulações diversas, sendo comum encontrar nestes bancos de dados sons
referentes a cidades, carros, motos, aviões, trens, pessoas conversando em
festas, crianças brincando, bichos de estimação, bichos selvagens e assim por
diante. Outro processo comum é o de criar e desenvolver os sons de maneira a
incrementar o áudio que fora captado nos sets. Assim, tal qual um sonoplasta
fazia na era de ouro do rádio no qual as radionovelas eram executadas ao vivo,
muitos efeitos sonoros são desenvolvidos no cinema com elementos diversos aos
que estão realmente conectados, como um trovão sendo representado pelo
chacoalhar de uma folha de zinco ou uma queimada na mata por um farfalhar de um
papel celofane. Assim, cabe a criatividade desse profissional em descobrir e
construir as representações sonoras, com intuito de se fornecer à imagem
fílmica a intensidade que é buscada.
Com a montagem em mãos e com
o áudio captado nas filmagens, o editor inicia – Rompimento – seu trabalho que consiste, primeiramente, em sondar a
qualidade da gravação feita nos sets, em perceber, excluir e/ou melhorar o
material sonoro capturado, pois é a partir deste diagnóstico – Preparação e Incubação – que o editor de
som projeta se haverá a necessidade de se dublarem algumas falas, se terá que
buscar sons específicos em seu banco de dados – audioteca –, se terá que criar
sons para determinados eventos, se terá que tratar, modificar ou alterar os
sons captados, se terá que ir a determinados locais para gravações externas de
sons ambientes etc.
É a partir dessa análise
criteriosa que o designer do som começa uma busca de hipóteses e possibilidades
– Expansão e Iluminação – para criar e arquitetar os sons compatíveis ao universo fílmico proposto,
flagrado e apresentado pelo cineasta. Assim, produzir uma paisagem sonora consiste em ter a capacidade de: (a) perceber a
qualidade dos sons, isto é, as texturas, os timbres, os tons, as modulações, nuances
e frequências; (b) entender sua plasticidade e heurística, quer dizer, a
facilidade às manipulações, arranjos, sobreposições, modificações,
transformações e dissipações diversas (ver SANTAELLA, 2001: 131-151); c) e
compreender a potencialidade do som em evocar imagens acústicas (ver MCLUHAN apud MEDITSCH, 2005: 148).
Dessa maneira, a fase de
formulação de possibilidades à construção da paisagem sonora fílmica demanda
uma sensibilidade e uma criatividade que permita que a obra alcance uma
identidade estética também por meio do som. Apesar de o áudio de um filme estar
sempre associado às imagens, é o seu hibridismo, isto é, seu processo de
simbiose – retroalimentação contínua – que tem de ser observado e dimensionado
ao longo da narrativa. De fato, o som não poderia ser visto apenas como uma
linguagem menor ou subalterna à linguagem visual no cinema, ao contrário, é
exatamente para além dos limites das dimensões dos planos que se espraia e toma
corpo a paisagem sonora. Portanto, é para o que se vê, e, principalmente, para
o que não se vê, que a linguagem sonora tem que ser projetada no cinema.
Com as propostas sonoras definidas, inicia-se
a fase – Transição e Verificação – em
que se auscultam as restrições estéticas estabelecidas na fase anterior. Dessa
maneira, os alicerces da composição/paisagem sonora são erigidos cena após
cena. Assim, o mesmo zelo dado à montagem é dado à estruturação, à organização
e à integração dos sons às intensidades dramáticas correspondentes e
desenvolvidas pela edição. Como em uma partitura musical, a sintaxe sonora é
alicerçada à sintaxe das imagens em movimento. Assim, ritmos, ênfases,
relaxamentos, distorções, misturas, acentos e densidades são cadenciados em
conjunto. Flutuações são observadas, ora as imagens se sobressaem, ora são os
sons que vêm à superfície, dando uma multidimensionalidade à própria narrativa
fílmica.
Essa ressonância –
acoplamento entre os sons com as imagens (PRIGOGINE, 2011: 46) – moldada neste
período de definições, é testada inúmeras vezes na fase seguinte – Maturação e Formulação – que consiste em
observar as sincronizações, os equilíbrios, as modulações e metamorfoses,
esteticamente idealizadas e compostas em uma arquitetura sonora, sendo agora
metodicamente analisadas, decantadas e refinadas. É o momento, portanto, de
mixagem de som em que cada pista de áudio está disponível para ser acessada,
alterada e ajustada, se houver necessidade.
Ao final, quando todos os
sons, incluindo-se a trilha sonora, estão em equilíbrio (PRIGOGINE, ibid.: 69)
tanto às ideias do cineasta, quanto ao assunto abordado, e as paisagens visuais
e sonoras entram em um fluxo ativo – circuito – nutrindo uma à outra, é que um
estado estacionário é atingido (MORIN, 2008: 234-235). Essa homeostase – Clímax –, responsável por gerar uma
identidade audiovisual ao filme, só é alcançada quando pontuada por movimentos
dinâmicos que consistem em permear a narrativa fílmica de flutuações e
cadências dramáticas variadas pelas e nas interações, desordens, antagonismos,
complementações e associações entre os sons e as imagens. Portanto, é essa
dinamicidade do circuito – audiovisual – que provê a unidade múltipla e a
beleza estética do sistema (ver VIEIRA, 2008: 96).
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edição.
[1]
Seguindo os passos de
Jorge Vieira ao adaptar a proposta de Moles com as propostas evolutivas
ontológicas de Mende – evolon – é possível compreender
melhor em que momento ocorre os processos de abertura e fechamento – a cada
subsistema – tão essenciais à nucleação na realização de um filme.
[2]
E ainda
assim pode-se trabalhar um jogo entre os sons de uma cena aparecerem e
extrapolarem por outras em sua sequência, de maneira a sobrepô-las e
relacioná-las a partir do áudio.
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