sábado, 26 de abril de 2014

O Som no Cinema: uma abordagem sistêmica sobre seu processo de criação



É quase impossível fazer filmes sem música. Filmes precisam do cimento da música. Eu nunca vi um filme melhor sem música. Música é tão importante como fotografia. - Bernard Hermann



Introdução:

A realização de um filme implica a integração e interação de um conjunto de agentes especializados em áreas nas quais, em outras artes, aparecem como dominantes, mas que, no caso do cinema, são co-participantes. O que Riccioto Canudo havia previsto como o mito da arte total ao se referir ao cinema (STAM, 2003: 43) torna-se palpável nos sets de filmagem em que artistas de diferentes formações são unidos no desenvolvimento de uma obra complexa.
O fato de o cineasta tomar as decisões cruciais na realização do filme não tira a co-autoria dos outros agentes nem o caráter poético de suas funções no que tange à confecção do filme. Seguindo essa perspectiva, o que se constata é que essas interações (MORIN, 2008: 105) que compõem e moldam a realização de um filme configuram-se como sistêmicas, isto é, há um conjunto de agentes semióticos com funções específicas que interagem e se integram na realização da obra.
Esta interação entre agentes especializados e sua integração imersa à produção de um filme forma uma organização ativa – sistema – cuja matriz processual é forjada pelo jogo multiforme e relativo entre diversidade, variedade, antagonismo, desvio, ruptura, equilíbrio, ordem e desordem. Assim, uma visão holística simplificadora de que um filme seja um todo harmônico é aqui posta em xeque logo de início. Porque “(...) a ideia de sistema não é apenas harmonia, funcionalidade, síntese superior; ela traz em si, necessariamente, a dissonância, a oposição, o antagonismo” (MORIN, ibid.: 154). 
Assim, um filme não é assinado apenas por um autor, mas por um conjunto de autores, cujas especialidades complementam-se, coadunam-se e retroagem em um policircuito recursivo (MORIN, ibid.: 231), cuja dinâmica opera em torno de concessões, cooperações e associações entre as competências participantes. De fato, essa unidade complexa do cinema depende de uma eco-organização (MORIN, 2005: 35-42), cuja dimensão comporta uma natureza temporal, isto é, uma organização que se dá no tempo (VIEIRA, 2008: 93) e cuja lógica gira em torno de processos temporais, que por sua vez comportam transformações, flutuações e intersemioses.  
 Segundo Vieira (ibid.: 89), existem três parâmetros classificatórios fundamentais para se observar um sistema: sua capacidade de permanência, seu meio ambiente e sua autonomia. Ainda dentro dessa perspectiva, para um sistema consolidar-se como tal, existem parâmetros chamados hierárquicos ou evolutivos, isto é, dependentes do fator tempo para se estabelecer, delineados da seguinte forma: composição, conectividade, estrutura, integralidade, funcionalidade e organização, todos permeados por um parâmetro que pode surgir desde o primeiro estágio: a complexidade. Assim, um sistema é caracterizado por seu processo temporal e sua capacidade de crescimento e desenvolvimento. A complexidade de tal movimento temporal se dá pela diversidade de conexões que são realizadas em prol da sobrevivência do sistema.
No caso do cinema, um processo similar pode ser visto na realização e produção de um filme. Dada a necessidade desses agentes especializados, que são postos em conjunto para trabalharem em prol da realização de uma obra cinematográfica, o que há nesse ambiente é um processo temporal que demanda evoluir por cada parâmetro hierárquico apontado anteriormente. Este reflete-se na capacidade de permanência, isto é, na capacidade de se atingir uma regularidade – redundância (VIEIRA, ibid.: 92) – na construção fílmica, que pode ser constatado no filme finalizado. Pois, um filme não é feito de forma linear, mas por partes que se juntam na fase de pós-produção e finalização. Assim, ao fim e ao cabo, um filme tem que apresentar uma autonomia, em que tudo se conecta de forma coesa e coerente: direção de arte, direção de fotografia, cenografia, figurino, roteiro, direção, planos, montagem etc.
Aliás, os parâmetros de coesão e coerência são também parâmetros de consolidação de um sistema. A coesão lida com a sintaxe entre elementos, sua articulação e efetividade. A coerência lida com a semântica que se desenvolve em prol de uma dialogia intersemiótica entre esses elementos para a construção de sentido entre os mesmos, em um todo integrado, complexo e significativo.
O que se observa é que há, em graus maiores ou menores, o risco de essa combinação entre agentes e especialidades entrar em processo de entropia (MORIN, ibid.: 94), perdendo a coesão sintática e a coerência semântica, prejudicando as interfaces e intercâmbios intersemióticos entre suas várias camadas de significação. Essas camadas de significação são cunhadas e entrelaçadas pela integralidade e organização da direção de fotografia, direção de arte, figurino, cenografia, trilha sonora, roteiro, direção etc., dentro de um todo complexo, o filme.
De fato, a riqueza organizacional de um sistema é medida pela sua diversidade e variedade, pois sua lógica é pautada pela transformação, geração e produção, ou como Morin destaca: as interações e associações – entre essas áreas distintas inerentes ao processo de realização cinematográfica – “se entreproduzem” (MORIN, ibid.: 202). Assim, o efeito da entropia seria o de uma homogeneização do sistema, a perda do múltiplo e da diferença. Portanto, o colapso do sistema, pois a “organização de um sistema é a organização da diferença” (MORIN, ibid.: 149).
Portanto, ao fim, a poética desenvolvida no cinema é confeccionada nesse jogo ontológico sistêmico das interações entre agentes semióticos responsáveis por comporem um todo múltiplo e cooperativo (MORIN, ibid.: 147). Assim, cada agente, em sua especialidade, é responsável por um fragmento sígnico que passa pelo crivo de sua criação, desenvolvimento e produção. Esse fragmento tem que: a) conectar-se; b) traçar relações; c) estruturar-se, isto é, estabelecer e fortalecer essas relações intersemióticas – de troca – ao longo do período de realização fílmica; d) integrar-se a outras partes sígnicas em um processo de complementaridade; e) cumprir uma função, visando uma cooperação mútua e interdependente; f) e corporificar-se em uma organização (ou organicidade) coesa o suficiente que consiga desenvolver uma regularidade pragmática durante todo o processo de realização do filme. De fato, uma fotografia, um figurino, uma direção de arte, por exemplo, integram-se e tomam corpo pela complexidade com que dialogam entre si, pelas interfaces e intercâmbios sígnicos que são capazes de realizar e, principalmente, manter e entreproduzir, portanto, transformar (MORIN, ibid.: 148).
O que faz essa multiplicidade de agentes funcionarem em uma unidade complexa e inter-atuante é aquilo que Aumont chama de ideia do filme, que o cineasta tem da obra ainda no início de seu processo criativo (AUMONT, 2006: 136). Nesse sentido, essa ideia coloca esses subsistemas em atividade formando um policircuito recursivo retroativo entre o todo às partes, e entre as partes ao todo. Isso quer dizer que as partes – subsistemas – retroagem recursivamente sobre o todo – o filme – e o todo, por sua vez, retroage recursivamente sobre as partes formando esse policircuito no qual as intersemioses, flutuações e transformações fazem morada (MORIN, ibid.: 228).
De fato, essa ideia desencadeia os fluxos e os multiprocessos – círculo-evoluções – entre os subsistemas e essa dialogia – entre roteiro, direção de arte, direção de fotografia, cenografia, figurino, atores, direção, montagem, trilha sonora etc. – ocorre em torno dessa ideia-chave. Essa nucleação em torno de uma ideia que move a organização é o fechamento do sistema, porém não é um fechamento total ao ambiente em que está imerso, pois a ideia nucleadora, para ter autonomia, alimenta-se de saberes – memória – aos quais essa ideia-chave está umbilicalmente conectada. Assim, a nucleação do sistema – o que implica dizer difusão de informação e a elaboração/execução de método/estratégia de performances – favorece o florescimento dos subsistemas, isto é, promove a diversidade (leia-se riqueza), provê a interdependência (leia-se complementaridades) e permite o intercâmbio (leia-se intersemioses) entre as partes e o todo neste policircuito recursivo retroativo.
Cada subsistema possui uma herança e uma memória que se torna, ao fim e ao cabo, fonte de saberes, competências e de conhecimento de articulação de linguagem (MORIN, ibid.: 210). O roteiro, herança da literatura (AUMONT, ibid.: 40) e da dramaturgia, serve de guia para a produção que se concentra em tentar trazer à superfície a história ali descrita, fazendo uma analogia, o roteiro seria a planta-baixa de um edifício que vai consumir horas e horas para ser erigido. A direção de arte (herança das artes plásticas) trata de esboçar e estabelecer os aspectos visuais sugeridos pelo roteiro e pelo diretor; o cenógrafo (herança do teatro e em alguns aspectos da arquitetura) trata de dar vida e relevo aos espaços onde a encenação será realizada; o figurinista (herança da moda e do teatro) trata de encarnar no vestuário os aspectos sociais, históricos e psicológicos dos personagens com intuito de dar dimensão a estes; o diretor de fotografia (herança da própria fotografia) trata de escrever a história ali encenada por meio da disposição e articulação das luzes, lentes e enquadramentos; o compositor da trilha sonora (herança da música) trata de contar e transmitir os sentimentos das cenas encenadas por meio da música. Ainda que inserida na pós-produção, a música tem o caráter de enaltecer e intensificar a encenação e a montagem; o diretor (herança das outras artes) é um autor complexo que possui a competência conjugada do regente, pintor, escritor, encenador, fotógrafo, arquiteto, poeta e compositor. É, sobretudo, um mediador de competências cujo discurso se desenvolve por meio da integração e consolidação de uma dialogia entre os outros agentes semióticos envolvidos no processo de criação do filme. Ele forja sua independência na e pela dependência dos especialistas envolvidos (ver MORIN, ibid.: 253). Assim, sua poética é articulada por meio de uma ecodependência, e sua plenitude criativa floresce e ganha brilho ao permeá-la de colaborações, cooperações e complementações.
Morin define um subsistema da seguinte maneira: é “(...) todo sistema que manifeste subordinação em relação a um sistema no qual ele é integrado como parte” (MORIN, ibid., 175). Assim, cada subsistema como direção de arte, roteiro, direção de fotografia, trilha sonora, direção, cenografia, figurino, montagem, atuação etc., possui uma história – memória – que advém, de uma forma ou de outra, de artes pregressas ao cinema. Portanto, cada subsistema carrega consigo uma herança semiótica que passa por transformações no meio cinematográfico. Assim, se, por um lado, essas especialidades desenvolveram as potencialidades do cinema, por outro, o meio permitiu e propiciou novos desdobramentos e novas articulações às especialidades.  
Entretanto, este circuito, formado por subsistemas cujas especialidades são postas para atuarem em conjunto, envolve um fator tempo que subjaz a todo o sistema. Assim, cada subsistema passa por fases evolutivas de maneira diferenciada e em momentos específicos durante a produção de um filme. Daí o termo círculo-evoluções,  pois o fim de um processo é o começo de um outro. Ou como Morin define é um : “(...) multiprocesso retroativo se fechando em si mesmo a partir de múltiplos e diversos circuitos (…)” (MORIN, ibid.: 231). Assim, o término do roteiro é o início da pré-produção, o fim da pré-produção é o início da produção ou filmagem, o fim deste último é o começo da montagem e da pós-produção, portanto é um policircuito retroativo recursivo, no qual os subsistemas evoluem por um processo criativo que contém fases distintas e momentos específicos. Portanto, é um policircuito retroativo recursivo, no qual os subsistemas evoluem por um processo criativo que contém fases distintas como: rompimento, preparação, incubação, expansão ou iluminação, transição ou verificação, maturação ou formulação e clímax (ver VIEIRA, 2008: 58)[1].


1. Sobre paisagens sonoras, sentimentos e melodias


A trilha sonora ou a música, que acompanha a narrativa cinematográfica, tem como delimitador – ou cadência – o próprio ritmo do drama na montagem. Ritmo é um conceito que vem da linguagem sonora e que é aqui utilizado para explicar a organização e as articulações da sintaxe dos planos pela montagem. Isso porque a ação capturada e articulada pela associação dos enquadramentos está impregnada de movimento, e este movimento possui um ritmo, que pode ser explorado, subtraído, acelerado, pausado, desacelerado etc., conforme a intervenção da montagem, pois toda narrativa está banhada e pontuada por ritmo(s). Assim, a encenação flagrada/captada tem uma cadência dramática com relaxamentos, acentos, impulsos e ênfases dentro de uma temporalidade. De fato, dependendo da maneira como o cineasta aborda e desenvolve as cenas, tais cadências dramáticas, dispostas nas imagens em movimento justapostas, acabam configurando um ritmo ou uma variedade de ritmos (SANTAELLA, 2001: 169).
A trilha sonora utiliza-se desse ritmo – idealizado, configurado e desenvolvido na montagem – para traçar sua temporalidade, relacionando-se aos eventos dramáticos, transformando a visualidade em música, isto é, traduzindo os gestos, as ações, os movimentos e tensões em progressões melódicas (SANTAELLA, ibid.: 174) condizentes e/ou antagônicas ao que está sendo mostrado. A música, portanto, está conectada à narrativa, vai lidar com a sucessão dos fatos em que os personagens estão inseridos. Porém, seu papel está em manter e sugerir uma sequencialidade e uma continuidade de sentimento (ver PEIRCE, 1998: 263), sentimento que está impregnado na composição visual, mas que, com a melodia de uma música, espraia-se para além da tela. Mantém na mente aquilo que não pode, apenas pela visualidade, ser mostrado, mas que, pela trilha sonora, pode ser sugerido e, talvez, sentido. Assim, o sentimento com que os personagens, lá na tela, estão envolvidos pode, pela sucessividade das notas de uma melodia, ser sugerido ao espectador.
Herança da música, a trilha sonora traz ao cinema todo o arcabouço – memória – de séculos de escolas, movimentos, autores, gêneros e estilos diversos. Seu raio de ação é variado e depende da maneira como o cineasta a vê em seu filme, pois a música feita para o cinema tem como característica principal o fato de, por meio de suas notas, representar o universo fílmico abordado, como se as intensidades, os enfoques e os dramas retratados e/ou representados no filme tivessem um correspondente à altura, via linguagem musical. Quando o compositor consegue tal nível de identificação/complementação entre trilha sonora e filme, um simples tocar de uma melodia faz evocar cenas inteiras à mente do espectador, o faz “reviver” as emoções outrora sentidas ao longo do filme. Por isso mesmo, seu emprego no cinema muitas vezes esteve em torno de mistério (ver BERCHMANS, 2006: 15), pois de alguma maneira sabia-se que a música produzida para os filmes tinha o poder de intensificar ainda mais as “vivências” dos personagens na tela com o espectador.
De fato, o som no cinema tem que ser percebido da mesma maneira que a imagem. Sua composição representa mais do que apenas um sincronismo com os eventos capturados pelos enquadramentos, pois, da mesma maneira como a composição da imagem passa pelo crivo de um processo de criação criterioso em termos de luz, disposição dos objetos, encenação, perspectiva, leitura do quadro e deslocamento em paralelo ou em conjunto à ação etc., o som também demanda uma composição que vise a uma ambientação ao universo fílmico em destaque.
Assim, a construção da paisagem sonora (ver SCHAFER, 1997: 366) em um filme tece relações muito mais tênues com a imagem. Entretanto seu impacto semiótico. atribuído a sua facilidade de sugestão, pode ser mais intenso e dinâmico que muitos enquadramentos em sucessão. Primeiramente, a linguagem sonora é, prioritariamente, icônica. Pois, enquanto “(...) no percepto visual, por exemplo, a sensação de externalidade, de algo que está lá, fora de nós, diferente de nós, é proeminente, no som, o senso de alteridade e externalidade tende a dissipar-se na fusão icônica entre o som físico e o som percebido” (SANTAELLA, 2001: 111).
A junção da composição visual com a composição sonora trouxe uma complexidade importante para montagem. Enquanto a ação é fragmentada em diversos planos, o som, ao contrário, é contínuo, só cessando quando se muda de local e espaço[2]. Portanto, o som cria uma ambiência, isto é, uma paisagem que se amalgama com os planos justapostos. De fato, ao mesmo tempo, o que se cria é um enlace entre o som na tela e o som que o público sente. Assim, qualquer alteridade é dissolvida, isto é, aquele universo fílmico, no qual aqueles personagens estão inseridos, é compactuado pelo espectador pelo áudio, nada separa os dois, não há um delimitador, há uma imersão sugerida pelos sons daquele ambiente mostrado pelas imagens. Dessa maneira, a alteridade que reside na imagem na tela desvanece-se pelo e no som. Portanto, por meio do som, o público compactua com o mesmo ambiente sonoro que há na tela. Como Santaella destaca (ibid.: 109): “O som físico que está lá, fora de mim, é sentido como se estivesse brotando aqui dentro, volátil, instável, movendo-se no passo da vida.”
O som está conectado à imagem, ao plano e sua sucessão no cinema, mas, apesar dessa conexão diádica, o som tem um poder de sugestão que vai além do que está na tela.  De fato, a linguagem sonora vai preencher os vazios que a imagem fragmentada da montagem possui. Em um processo de simbiose, as imagens em sucessão e o som nutrem-se, produzindo um efeito que vai agir diretamente na consolidação do espaço fílmico muitas vezes não mostrado em sua totalidade pelos enquadramentos, mas sugerido pelo som. Portanto, é o som que favorece a imersão do espectador ao filme, pois a capacidade do som em sugerir e acionar a imaginação do espectador é tão profícua que basta que o cineasta dê alguns detalhes com as imagens e desenvolva o áudio, criando uma ambientação sonora coerente, para que o espectador logo interprete o entorno como sendo pertencente a uma cidade, a uma floresta, a um deserto, a um país de uma determinada região etc. Da mesma maneira, dado o alto grau de falibilidade, tal interpretação pode ser logo colocada em xeque fazendo com que o espectador refaça seu raciocínio ao longo da narrativa.
A música no cinema banha o espectador daquele universo fílmico apresentado/representado/capturado pelo cineasta, assim, os sentimentos,  encarnados em ações (ARISTOTELES, 2005: 36), impressos nas imagens em movimento e articulados pela montagem, são transformados em linguagem musical. Esta tênue complementação tem a potencialidade de trazer o espectador para o filme, dada a continuidade dos eventos impregnados de intensidades dramáticas, traduzidas em notas musicais, melodias, temas e composições dispostas ao longo da narrativa.
É esta continuidade de sentimento sugerida pela música e atrelada à narrativa fílmica que penetra na mente do espectador (PEIRCE, 1998: 263), fazendo brotar sentimentos voláteis e evanescentes, porém em momentos precisos e específicos ao longo da temporalidade fílmica, em gradações e em graus dinâmicos recursivos e retroativos, pois, tais sentimentos, para serem acionados, precisam ser articulados no tempo, e esta poderosa associação, entre continuum de sentimento e narrativa fílmica, conforme as palavras de Peirce (ibid.: 264): “(...) tem de ser vivida no tempo; nem pode qualquer tempo finito abarcá-la na sua totalidade.” Assim, “(...) os sentimentos instantâneos fluem em conjunto num continuum de sentimento, o qual adquiriu generalidade e possui, num grau modificado, a vivacidade peculiar de sentimento” (PEIRCE, ibid.: 263). Portanto, é a interrelação temporal e contínua – entre trilha sonora e narrativa fílmica – projetada, isto é, alimentada, encadeada, alicerçada em andamentos específicos e em ressonância à composição visual, que tece a dinâmica necessária para se ativar os estados do sentir. Santaella (2001: 83) esclarece:

(...) as indicações de andamento como allegro, piano, moderato têm relação com certos estados de espírito. Essas formas expressivas evocam emoções porque provavelmente as diferentes cadências e ritmos, os tons graves e agudos, os diferentes coloridos ou timbres dos instrumentos apresentam correspondências com os ritmos vitais, sensações viscerais e pulsações biológicas que são também diferentes, mais rápidas ou mais lentas, dependendo de estarmos sentindo alegria ou desgosto, euforia ou tédio, placidez etc. Sob esse aspecto, a música provoca aquilo que chamo de emoção instintiva, ressonância, correspondências que são atraídas por semelhança de pulsação. Em suma, há ritmos sonoros que apresentam correspondências com os ritmos biológicos que acompanham diferentes estados do sentir. 

Quando o músico compositor recebe – Rompimento – a encomenda de produzir a trilha sonora original para um filme, um dos primeiros passos é apontar a este profissional a visão do cineasta diante do filme como um todo. Neste contato, o que se estabelece então é o conceito musical idealizado pelo diretor (ver BERCHMANS, ibid.: 28). A partir daí, uma franca pesquisa se inicia – Preparação e Incubação –, assim, por meio de referências musicais, muitas vezes até já dispostas na edição de imagens, o diretor transmite suas ideias para que o compositor compreenda as ênfases buscadas a cada cena.
Com isso em mãos, o compositor começa a decupar as cenas editadas: tempo, ritmo, intensidade, contexto, texto e subtexto. Assim, o que se define são os momentos exatos em que a música se inicia, evolui e fecha (ver BERCHMANS, ibid.: 30-31). Cada trecho, às vezes de dez segundos ou cerca de minutos, é estipulado, divisado e pontuado. Esta métrica, ditada pela montagem, fornece ao compositor seu raio de ação ao longo da narrativa, cabendo-lhe compor nos tempos, na cadência e nos momentos desenvolvidos pela sintaxe visual.
A fase seguinte – Expansão e Iluminação – é o momento em que o músico inicia seu processo abdutivo. É o momento em que a música do filme começa a aparecer aqui e ali, conforme a sequência de notas ou canção vai surgindo, um novo colorido é nuançado, as cenas adquirem contornos expressivos não vislumbrados. Como hipóteses, trechos, períodos, progressões vão se acomodando, tateantes, hesitantes, encontram-se, dispersam, retornam, irradiam e amalgamam-se. Como se os estados de espírito dos personagens nas cenas estivessem aos poucos migrando para a melodia, como se o não dito encontrasse sua linguagem perfeita na e pela música. Sobre esse processo Fellini (2000: 213) relata:

Posso passar dias inteiros com Nino [Rota], ouvindo-o ao piano, na tentativa de encontrar uma música, de tornar clara uma frase musical, de modo a coincidir da maneira mais exata possível com o sentimento, a emoção que quero expressar naquela sequência.       

Após a descoberta da música, que serve de base ao filme, ocorre um processo de adequação – Transição e Formulação – de temas que flertam, retomam, aludem, sugerem a trilha sonora principal. Estes temas são versões variadas da melodia base e servem para diferentes cenas, sobretudo, àquelas cujas pontuações dramáticas divergem do estado de espírito ao qual a trilha sonora principal evoca. Assim, fugindo da monotonia ao longo da narrativa, os temas circundam a música-base e tecem um fluxo sonoro cujos feixes flutuam, ora enfatizando um estado do sentir, ora explorando outro. Tal dinâmica é importante para enaltecer a trilha sonora principal, pois, quando esta surge, parece que sempre esteve lá, nos interstícios dos outros temas, esperando seu momento, que, quando sobreposto aos outros e em cenas chave, mostra-se tão envolvente e impactante que se torna memorável.
A fase seguinte – Maturação e Formulação – configura-se no momento de refinamento das composições musicais por meio do processo de mixagem. Aqui o músico está junto a um engenheiro de som e sua preocupação é equalizar os instrumentos, dosar os graves e os agudos, pinçar o que ficou ruim e tentar sondar alternativas, chamar alguns músicos para regravar os trechos necessários, testar novas nuances, timbres, movimentos e abordagens à música-base e aos seus temas. Este lapidar é importante, pois é o momento de construção da textura do som como um todo. Tal processo influi na configuração da paisagem sonora e são esses relevos, climas e ambiências que banham o espectador naquele universo fílmico projetado na tela.
Quando a trilha sonora está equalizada à montagem, um processo de simbiose se estabelece. Tal estágio – Clímax – abriga não apenas correspondências, ressonâncias e complementações entre as composições sonoras e visuais, mas, sobretudo, uma integração múltipla temporal interatuante entre estas duas esferas. Assim, como se uma não “vivesse” sem a outra, tais sintaxes se amalgamam, forjam uma cumplicidade, moldam uma ecologia, projetam ao espectador uma diversidade pontuada por uma unidade, configuram, sobretudo, uma autonomia, uma identidade, uma permanência, uma continuidade e uma riqueza semântica pela e nas suas associações, interações e junções. Como Bernard Hermann (apud BERCHMANS, 2006: 22) enfatiza: “É quase impossível fazer filmes sem música. Filmes precisam do cimento da música. Eu nunca vi um filme melhor sem música. Música é tão importante como fotografia.”   
De fato, tão importante quanto as imagens em movimento são os sons que acompanham, enaltecem e ampliam-nas. O designer de som e o sonoplasta são os responsáveis não só por tratarem os sons em conformidade às ações nas imagens, mas por compor, projetar e arquitetar a representação sonora de um filme. Em mercados, em que a segmentação nas funções é acentuada, como em Hollywood, o designer de som é o responsável por criar os efeitos sonoros para representarem ações e objetos existentes apenas na realidade ficcional apresentada pelo filme. É exatamente por isso que tal profissional é necessário em filmes de ficção-científica, de fantasia e de terror, já que estes são impregnados de elementos que, muitas vezes, não possuem correspondência ou referência na realidade, mas que, entretanto, precisam de sons críveis aos elementos visuais apresentados para o filme, como naves espaciais, alienígenas, dinossauros etc. Já o sonoplasta é o responsável por desenvolver sons compatíveis com as ações nas imagens em movimento, por exemplo, sons de passos, de copos tilintando, de socos e pontapés, de bater de asas e assim por diante. Seu papel é, então, o de cobrir as ações dos elementos visuais mostrados nas imagens com os sons correspondentes aos mesmos, criando um sincronismo entre imagem e som. Em alguns filmes ainda existe a figura de um supervisor de áudio que cuida da dublagem dos diálogos, caso estes não estiverem bem captados ao longo das filmagens. Entretanto, em mercados, em que não existe essa segmentação e especialização, o editor de som assume as três funções.  
  Como Michel Chion aborda (2008: 79), o som de um filme difere do som da realidade, pois, desde a sua captação ao seu tratamento, existem inúmeras intervenções que o transformam: como a qualidade do microfone utilizado nas filmagens; o armazenamento dos dados de áudio; a manipulação deste áudio digitalizado em softwares específicos; a criação e o desenvolvimento de junções de sons que visem a “encorpar” e a ampliar os eventos capturados nas imagens em movimento; o refinamento do som dos diálogos por meio do processo de dublagem; a gravação e tratamento da voz em off ou voz de um narrador que pode pertencer ou não ao universo fílmico representado; a mixagem destes sons em multipistas equalizando-os em conformidade ao espaço encontrado às salas de exibição; e, por último e não menos importante, o enlace final entre os sons com a trilha-sonora podendo acontecer de inúmeras maneiras: harmônica, contrapontística, ruidosa, dissonante etc.
O editor de som trabalha tanto com o som capturado pela equipe responsável pelo chamado som direto, isto é, captado nos sets de filmagens, quanto com um banco de dados de sons de variadas fontes e origens concernentes a uma gama de texturas, timbres e modulações diversas, sendo comum encontrar nestes bancos de dados sons referentes a cidades, carros, motos, aviões, trens, pessoas conversando em festas, crianças brincando, bichos de estimação, bichos selvagens e assim por diante. Outro processo comum é o de criar e desenvolver os sons de maneira a incrementar o áudio que fora captado nos sets. Assim, tal qual um sonoplasta fazia na era de ouro do rádio no qual as radionovelas eram executadas ao vivo, muitos efeitos sonoros são desenvolvidos no cinema com elementos diversos aos que estão realmente conectados, como um trovão sendo representado pelo chacoalhar de uma folha de zinco ou uma queimada na mata por um farfalhar de um papel celofane. Assim, cabe a criatividade desse profissional em descobrir e construir as representações sonoras, com intuito de se fornecer à imagem fílmica a intensidade que é buscada.
Com a montagem em mãos e com o áudio captado nas filmagens, o editor inicia – Rompimento – seu trabalho que consiste, primeiramente, em sondar a qualidade da gravação feita nos sets, em perceber, excluir e/ou melhorar o material sonoro capturado, pois é a partir deste diagnóstico – Preparação e Incubação – que o editor de som projeta se haverá a necessidade de se dublarem algumas falas, se terá que buscar sons específicos em seu banco de dados – audioteca –, se terá que criar sons para determinados eventos, se terá que tratar, modificar ou alterar os sons captados, se terá que ir a determinados locais para gravações externas de sons ambientes etc.
É a partir dessa análise criteriosa que o designer do som começa uma busca de hipóteses e possibilidades – Expansão e Iluminação – para criar e arquitetar os sons compatíveis ao universo fílmico proposto, flagrado e apresentado pelo cineasta. Assim, produzir uma paisagem sonora consiste em ter a capacidade de: (a) perceber a qualidade dos sons, isto é, as texturas, os timbres, os tons, as modulações, nuances e frequências; (b) entender sua plasticidade e heurística, quer dizer, a facilidade às manipulações, arranjos, sobreposições, modificações, transformações e dissipações diversas (ver SANTAELLA, 2001: 131-151); c) e compreender a potencialidade do som em evocar imagens acústicas (ver MCLUHAN apud MEDITSCH, 2005: 148).
Dessa maneira, a fase de formulação de possibilidades à construção da paisagem sonora fílmica demanda uma sensibilidade e uma criatividade que permita que a obra alcance uma identidade estética também por meio do som. Apesar de o áudio de um filme estar sempre associado às imagens, é o seu hibridismo, isto é, seu processo de simbiose – retroalimentação contínua – que tem de ser observado e dimensionado ao longo da narrativa. De fato, o som não poderia ser visto apenas como uma linguagem menor ou subalterna à linguagem visual no cinema, ao contrário, é exatamente para além dos limites das dimensões dos planos que se espraia e toma corpo a paisagem sonora. Portanto, é para o que se vê, e, principalmente, para o que não se vê, que a linguagem sonora tem que ser projetada no cinema.
 Com as propostas sonoras definidas, inicia-se a fase – Transição e Verificação – em que se auscultam as restrições estéticas estabelecidas na fase anterior. Dessa maneira, os alicerces da composição/paisagem sonora são erigidos cena após cena. Assim, o mesmo zelo dado à montagem é dado à estruturação, à organização e à integração dos sons às intensidades dramáticas correspondentes e desenvolvidas pela edição. Como em uma partitura musical, a sintaxe sonora é alicerçada à sintaxe das imagens em movimento. Assim, ritmos, ênfases, relaxamentos, distorções, misturas, acentos e densidades são cadenciados em conjunto. Flutuações são observadas, ora as imagens se sobressaem, ora são os sons que vêm à superfície, dando uma multidimensionalidade à própria narrativa fílmica.
Essa ressonância – acoplamento entre os sons com as imagens (PRIGOGINE, 2011: 46) – moldada neste período de definições, é testada inúmeras vezes na fase seguinte – Maturação e Formulação – que consiste em observar as sincronizações, os equilíbrios, as modulações e metamorfoses, esteticamente idealizadas e compostas em uma arquitetura sonora, sendo agora metodicamente analisadas, decantadas e refinadas. É o momento, portanto, de mixagem de som em que cada pista de áudio está disponível para ser acessada, alterada e ajustada, se houver necessidade. 
Ao final, quando todos os sons, incluindo-se a trilha sonora, estão em equilíbrio (PRIGOGINE, ibid.: 69) tanto às ideias do cineasta, quanto ao assunto abordado, e as paisagens visuais e sonoras entram em um fluxo ativo – circuito – nutrindo uma à outra, é que um estado estacionário é atingido (MORIN, 2008: 234-235). Essa homeostase – Clímax –, responsável por gerar uma identidade audiovisual ao filme, só é alcançada quando pontuada por movimentos dinâmicos que consistem em permear a narrativa fílmica de flutuações e cadências dramáticas variadas pelas e nas interações, desordens, antagonismos, complementações e associações entre os sons e as imagens. Portanto, é essa dinamicidade do circuito – audiovisual – que provê a unidade múltipla e a beleza estética do sistema (ver VIEIRA, 2008: 96). 


Referências:

ARISTÓTELES. (2005) Arte Poética. São Paulo: Martin Claret Editora.
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[1] Seguindo os passos de Jorge Vieira ao adaptar a proposta de Moles com as propostas evolutivas ontológicas de Mende – evolon – é possível compreender melhor em que momento ocorre os processos de abertura e fechamento – a cada subsistema – tão essenciais à nucleação na realização de um filme.
[2] E ainda assim pode-se trabalhar um jogo entre os sons de uma cena aparecerem e extrapolarem por outras em sua sequência, de maneira a sobrepô-las e relacioná-las a partir do áudio.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

A Montagem Cinematográfica: uma abordagem sistêmica sobre seu processo de criação





O trabalho do editor é em parte antecipar e em parte controlar o processo de pensamento do público. - Walter Murch



Introdução:

A realização de um filme implica a integração e interação de um conjunto de agentes especializados em áreas nas quais, em outras artes, aparecem como dominantes, mas que, no caso do cinema, são co-participantes. O que Riccioto Canudo havia previsto como o mito da arte total ao se referir ao cinema (STAM, 2003: 43) torna-se palpável nos sets de filmagem em que artistas de diferentes formações são unidos no desenvolvimento de uma obra complexa.
O fato de o cineasta tomar as decisões cruciais na realização do filme não tira a co-autoria dos outros agentes nem o caráter poético de suas funções no que tange à confecção do filme. Seguindo essa perspectiva, o que se constata é que essas interações (MORIN, 2008: 105) que compõem e moldam a realização de um filme configuram-se como sistêmicas, isto é, há um conjunto de agentes semióticos com funções específicas que interagem e se integram na realização da obra.
Esta interação entre agentes especializados e sua integração imersa à produção de um filme forma uma organização ativa – sistema – cuja matriz processual é forjada pelo jogo multiforme e relativo entre diversidade, variedade, antagonismo, desvio, ruptura, equilíbrio, ordem e desordem. Assim, uma visão holística simplificadora de que um filme seja um todo harmônico é aqui posta em xeque logo de início. Porque “(...) a ideia de sistema não é apenas harmonia, funcionalidade, síntese superior; ela traz em si, necessariamente, a dissonância, a oposição, o antagonismo” (MORIN, ibid.: 154). 
Assim, um filme não é assinado apenas por um autor, mas por um conjunto de autores, cujas especialidades complementam-se, coadunam-se e retroagem em um policircuito recursivo (MORIN, ibid.: 231), cuja dinâmica opera em torno de concessões, cooperações e associações entre as competências participantes. De fato, essa unidade complexa do cinema depende de uma eco-organização (MORIN, 2005: 35-42), cuja dimensão comporta uma natureza temporal, isto é, uma organização que se dá no tempo (VIEIRA, 2008: 93) e cuja lógica gira em torno de processos temporais, que por sua vez comportam transformações, flutuações e intersemioses.  
 Segundo Vieira (ibid.: 89), existem três parâmetros classificatórios fundamentais para se observar um sistema: sua capacidade de permanência, seu meio ambiente e sua autonomia. Ainda dentro dessa perspectiva, para um sistema consolidar-se como tal, existem parâmetros chamados hierárquicos ou evolutivos, isto é, dependentes do fator tempo para se estabelecer, delineados da seguinte forma: composição, conectividade, estrutura, integralidade, funcionalidade e organização, todos permeados por um parâmetro que pode surgir desde o primeiro estágio: a complexidade. Assim, um sistema é caracterizado por seu processo temporal e sua capacidade de crescimento e desenvolvimento. A complexidade de tal movimento temporal se dá pela diversidade de conexões que são realizadas em prol da sobrevivência do sistema.
No caso do cinema, um processo similar pode ser visto na realização e produção de um filme. Dada a necessidade desses agentes especializados, que são postos em conjunto para trabalharem em prol da realização de uma obra cinematográfica, o que há nesse ambiente é um processo temporal que demanda evoluir por cada parâmetro hierárquico apontado anteriormente. Este reflete-se na capacidade de permanência, isto é, na capacidade de se atingir uma regularidade – redundância (VIEIRA, ibid.: 92) – na construção fílmica, que pode ser constatado no filme finalizado. Pois, um filme não é feito de forma linear, mas por partes que se juntam na fase de pós-produção e finalização. Assim, ao fim e ao cabo, um filme tem que apresentar uma autonomia, em que tudo se conecta de forma coesa e coerente: direção de arte, direção de fotografia, cenografia, figurino, roteiro, direção, planos, montagem etc.
Aliás, os parâmetros de coesão e coerência são também parâmetros de consolidação de um sistema. A coesão lida com a sintaxe entre elementos, sua articulação e efetividade. A coerência lida com a semântica que se desenvolve em prol de uma dialogia intersemiótica entre esses elementos para a construção de sentido entre os mesmos, em um todo integrado, complexo e significativo.
O que se observa é que há, em graus maiores ou menores, o risco de essa combinação entre agentes e especialidades entrar em processo de entropia (MORIN, ibid.: 94), perdendo a coesão sintática e a coerência semântica, prejudicando as interfaces e intercâmbios intersemióticos entre suas várias camadas de significação. Essas camadas de significação são cunhadas e entrelaçadas pela integralidade e organização da direção de fotografia, direção de arte, figurino, cenografia, trilha sonora, roteiro, direção etc., dentro de um todo complexo, o filme.
De fato, a riqueza organizacional de um sistema é medida pela sua diversidade e variedade, pois sua lógica é pautada pela transformação, geração e produção, ou como Morin destaca: as interações e associações – entre essas áreas distintas inerentes ao processo de realização cinematográfica – “se entreproduzem” (MORIN, ibid.: 202). Assim, o efeito da entropia seria o de uma homogeneização do sistema, a perda do múltiplo e da diferença. Portanto, o colapso do sistema, pois a “organização de um sistema é a organização da diferença” (MORIN, ibid.: 149).
Portanto, ao fim, a poética desenvolvida no cinema é confeccionada nesse jogo ontológico sistêmico das interações entre agentes semióticos responsáveis por comporem um todo múltiplo e cooperativo (MORIN, ibid.: 147). Assim, cada agente, em sua especialidade, é responsável por um fragmento sígnico que passa pelo crivo de sua criação, desenvolvimento e produção. Esse fragmento tem que: a) conectar-se; b) traçar relações; c) estruturar-se, isto é, estabelecer e fortalecer essas relações intersemióticas – de troca – ao longo do período de realização fílmica; d) integrar-se a outras partes sígnicas em um processo de complementaridade; e) cumprir uma função, visando uma cooperação mútua e interdependente; f) e corporificar-se em uma organização (ou organicidade) coesa o suficiente que consiga desenvolver uma regularidade pragmática durante todo o processo de realização do filme. De fato, uma fotografia, um figurino, uma direção de arte, por exemplo, integram-se e tomam corpo pela complexidade com que dialogam entre si, pelas interfaces e intercâmbios sígnicos que são capazes de realizar e, principalmente, manter e entreproduzir, portanto, transformar (MORIN, ibid.: 148).
O que faz essa multiplicidade de agentes funcionarem em uma unidade complexa e inter-atuante é aquilo que Aumont chama de ideia do filme, que o cineasta tem da obra ainda no início de seu processo criativo (AUMONT, 2006: 136). Nesse sentido, essa ideia coloca esses subsistemas em atividade formando um policircuito recursivo retroativo entre o todo às partes, e entre as partes ao todo. Isso quer dizer que as partes – subsistemas – retroagem recursivamente sobre o todo – o filme – e o todo, por sua vez, retroage recursivamente sobre as partes formando esse policircuito no qual as intersemioses, flutuações e transformações fazem morada (MORIN, ibid.: 228).
De fato, essa ideia desencadeia os fluxos e os multiprocessos – círculo-evoluções – entre os subsistemas e essa dialogia – entre roteiro, direção de arte, direção de fotografia, cenografia, figurino, atores, direção, montagem, trilha sonora etc. – ocorre em torno dessa ideia-chave. Essa nucleação em torno de uma ideia que move a organização é o fechamento do sistema, porém não é um fechamento total ao ambiente em que está imerso, pois a ideia nucleadora, para ter autonomia, alimenta-se de saberes – memória – aos quais essa ideia-chave está umbilicalmente conectada. Assim, a nucleação do sistema – o que implica dizer difusão de informação e a elaboração/execução de método/estratégia de performances – favorece o florescimento dos subsistemas, isto é, promove a diversidade (leia-se riqueza), provê a interdependência (leia-se complementaridades) e permite o intercâmbio (leia-se intersemioses) entre as partes e o todo neste policircuito recursivo retroativo.
Cada subsistema possui uma herança e uma memória que se torna, ao fim e ao cabo, fonte de saberes, competências e de conhecimento de articulação de linguagem (MORIN, ibid.: 210). O roteiro, herança da literatura (AUMONT, ibid.: 40) e da dramaturgia, serve de guia para a produção que se concentra em tentar trazer à superfície a história ali descrita, fazendo uma analogia, o roteiro seria a planta-baixa de um edifício que vai consumir horas e horas para ser erigido. A direção de arte (herança das artes plásticas) trata de esboçar e estabelecer os aspectos visuais sugeridos pelo roteiro e pelo diretor; o cenógrafo (herança do teatro e em alguns aspectos da arquitetura) trata de dar vida e relevo aos espaços onde a encenação será realizada; o figurinista (herança da moda e do teatro) trata de encarnar no vestuário os aspectos sociais, históricos e psicológicos dos personagens com intuito de dar dimensão a estes; o diretor de fotografia (herança da própria fotografia) trata de escrever a história ali encenada por meio da disposição e articulação das luzes, lentes e enquadramentos; o compositor da trilha sonora (herança da música) trata de contar e transmitir os sentimentos das cenas encenadas por meio da música. Ainda que inserida na pós-produção, a música tem o caráter de enaltecer e intensificar a encenação e a montagem; o diretor (herança das outras artes) é um autor complexo que possui a competência conjugada do regente, pintor, escritor, encenador, fotógrafo, arquiteto, poeta e compositor. É, sobretudo, um mediador de competências cujo discurso se desenvolve por meio da integração e consolidação de uma dialogia entre os outros agentes semióticos envolvidos no processo de criação do filme. Ele forja sua independência na e pela dependência dos especialistas envolvidos (ver MORIN, ibid.: 253). Assim, sua poética é articulada por meio de uma ecodependência, e sua plenitude criativa floresce e ganha brilho ao permeá-la de colaborações, cooperações e complementações.
Morin define um subsistema da seguinte maneira: é “(...) todo sistema que manifeste subordinação em relação a um sistema no qual ele é integrado como parte” (MORIN, ibid., 175). Assim, cada subsistema como direção de arte, roteiro, direção de fotografia, trilha sonora, direção, cenografia, figurino, montagem, atuação etc., possui uma história – memória – que advém, de uma forma ou de outra, de artes pregressas ao cinema. Portanto, cada subsistema carrega consigo uma herança semiótica que passa por transformações no meio cinematográfico. Assim, se, por um lado, essas especialidades desenvolveram as potencialidades do cinema, por outro, o meio permitiu e propiciou novos desdobramentos e novas articulações às especialidades.  
Entretanto, este circuito, formado por subsistemas cujas especialidades são postas para atuarem em conjunto, envolve um fator tempo que subjaz a todo o sistema. Assim, cada subsistema passa por fases evolutivas de maneira diferenciada e em momentos específicos durante a produção de um filme. Daí o termo círculo-evoluções,  pois o fim de um processo é o começo de um outro. Ou como Morin define é um : “(...) multiprocesso retroativo se fechando em si mesmo a partir de múltiplos e diversos circuitos (…)” (MORIN, ibid.: 231). Assim, o término do roteiro é o início da pré-produção, o fim da pré-produção é o início da produção ou filmagem, o fim deste último é o começo da montagem e da pós-produção, portanto é um policircuito retroativo recursivo, no qual os subsistemas evoluem por um processo criativo que contém fases distintas e momentos específicos. Portanto, é um policircuito retroativo recursivo, no qual os subsistemas evoluem por um processo criativo que contém fases distintas como: rompimento, preparação, incubação, expansão ou iluminação, transição ou verificação, maturação ou formulação e clímax (ver VIEIRA, 2008: 58)[1].

1. Sobre revelações, lapidações e reescritas



Muitas vezes, em paralelo à fase de filmagem – ou de produção – transcorre a fase de pós-produção vinculada à montagem (ver SMITH apud CHANG, 2011: 168). Assim, em conformidade ao andamento das filmagens, o montador – e seus assistentes – vinculado ao projeto já começa a assistir, selecionar e editar as cenas gravadas. Tal procedimento colabora para o andamento de uma produção que trafega em um mainstream impulsionado pelas datas fixas de estreia e de retorno financeiro que alavanca e mantém os estúdios norte-americanos. Em produções menos preocupadas com este retorno financeiro, ditas independentes, tal processo de montagem geralmente só se inicia ao término de todas as filmagens programadas na fase de pós-produção.
De fato, a montagem é filha da modernidade, da industrialização, da produção em massa e em série, isto é, de um processo em que um produto final é fruto do trabalho de vários agentes envolvidos. Diferentemente de um produto feito pelas mãos de um artesão, a montagem está vinculada a um modus operandi em que o trabalhador não é responsável pelo todo, e sim por um pedaço específico do produto final que, aos poucos, é construído ao longo de uma linha de produção. Tal processo tornou-se célebre pela ótica de Charles Chaplin em seu Tempos Modernos (1936) que resume, com a ironia que lhe é própria, a maneira como a modernidade e a revolução industrial transformaram o modo de se produzir, trabalhar, viver e pensar o mundo.
Como Vincent Amiel destaca, o século XX poderia ser muito bem visto não só como o século da imagem, mas das associações de imagens (2007: 09). Para este, a montagem simboliza esse século, pois foi por meio deste tipo de procedimento de construção de discurso que a comunicação audiovisual se desdobrou. Assim, desde o cinema, passando pela televisão e chegando à hipermídia, o que se viu foi a seleção, edição e montagem áudio-verbo-visual sendo utilizada em larga escala e de diferentes formas, tanto para oprimir, quanto para libertar, tanto para entreter quanto para alertar, tanto para despertar, quanto para acalentar.
De fato, a montagem está intimamente conectada à fragmentariedade perceptiva a que a metrópole sujeitou o transeunte no final do século XIX (ver BENJAMIN, 1996: 174). Tal processo de associação/justaposição sígnica, imposta e suscitada pelo ambiente, acabou gerando novas formas e formatos de comunicação, pontuados pelo fragmento em constante movimento e em variados intercâmbios. Portanto, por meio desses fenômenos comuns à metrópole, novos hábitos e novos processos de aprendizagem (semiose) foram-se configurando, isto é, foi por fluxos intensos e dinâmicos que acabou tomando corpo uma linguagem, como Singer extrai do texto de Georg Simmel: “O rápido agrupamento de imagens em mudança, a descontinuidade acentuada ao alcance de um simples olhar e a imprevisibilidade de impressões impetuosas: essas são as condições psicológicas criadas pela metrópole” (SIMMEL in SINGER, 2004: 96).
Assinale-se ainda que a industrialização, a metrópole, o consumo, a multidão e os transportes públicos suscitaram um novo ambiente que, por sua vez, gerou e pontuou novas maneiras de se organizar as informações nos meios de comunicação da época, como a publicidade, o jornalismo, o rádio e o cinema, em que a edição – seleção, escolha e definição da informação a ser transmitida – de seus conteúdos era uma praxe que estava vinculada a um perfil editorial de seus donos ou diretores. A montagem, portanto, é uma praxe moderna, pois, desde seu início, esteve associada à retirada do excesso, daquilo que não interessa, formatar um design – layout – que chame atenção e direcionar as impressões dos transeuntes que passam nas galerias,  nas bancas de jornais e nas ruas da metrópole.           
 A montagem em si é, portanto, um modo de articulação de linguagem – seja visual, sonora, verbal ou em seus hibridismos – que pode ser encontrada em outras artes e meios de comunicação e que, portanto, não está vinculada necessariamente ao cinema. Aliás, no começo do século XX, os movimentos dadaísta e cubista já demonstravam procedimentos de montagem com grande desenvoltura e êxito. Entretanto, foi no cinema que a montagem encontrou seu lugar de destaque pelo fato de esta nova arte absorver e assimilar um modo de produção não mais vinculado ao do artesão/autor/artista, mas, sobretudo, ao encontrado nas fábricas e indústrias: (a) o filme – como produto final – era fruto do trabalho particionado de vários agentes envolvidos; (b) o produtor era o dono deste filme e ditava o ritmo de sua linha de produção; (c) que, por outro lado, estava atrelada a uma rede de distribuição e exibição em massa.
Assim, é a própria tecnologia (reprodutibilidade/maleabilidade técnica), inerente ao cinema que abriu a possibilidade ao procedimento moderno industrial da montagem. De fato, foi imersa em um contexto histórico-econômico de se perceber, interpretar e mediar o mundo, a partir e por meio do lucro, que a montagem cinematográfica foi concebida e associada aos moldes dos ambientes industrializados encontrados nas fábricas. Portanto, tal procedimento deveria ser projetado para o consumo, isto é, para agradar o gosto dos espectadores. Porém, por outro lado, diferentemente da ideia burguesa do lucro, este mesmo ambiente das fábricas fez surgir seu contraponto. Assim, os construtivistas russos fundamentaram na montagem o meio pelo qual a revolução comunista poderia ser propagada. Portanto, tal procedimento deveria ser projetado para a mudança, isto é, para induzir o pensamento do operário/trabalhador/espectador contra a opressão capitalista burguesa. Dessa forma, a construção tijolo por tijolo, parte a parte, realizada pelo operário e compactuada pelo realizador, na maneira de se associar as imagens, simbolizava essa afronta ao sistema. 
No fundo, e não à toa, os ataques à montagem – principalmente a naturalista/transparente/clássica – trafegaram imersos nas críticas ao próprio capitalismo e aos seus meios de produção aos quais esse termo estava vinculado. A opacidade da Nouvelle Vague com seus saltos e rupturas ou o plano sequência do neo-realismo italiano eram uma afronta direta ao cinema industrial, montado com o intuito de se simular a realidade e com o objetivo de se construir um espetáculo que agradasse a massa.
Assim, a forma de se montar um filme sempre esteve atrelada à maneira como seu realizador/produtor/diretor via, concebia, interpretava o seu entorno, e quais as impressões que este(s) desejava(m) transmitir ao espectador. Portanto, tal processo influi por dois fatores: (a) ao procedimento de articulação dos enquadramentos e, consequentemente, a planificação/decupagem da ação, isto é, a maneira como o cineasta e sua equipe concebem, desenvolvem e exploram a confecção das imagens em movimento; (b) e à construção de discurso, isto é, como essas imagens em movimento são associadas, justapostas e organizadas posteriormente.
Na verdade, ao se cogitar ações em paralelo, com Porter e depois a fragmentação da encenação com Griffith, os realizadores descobriram na montagem uma maneira de se contar estórias no cinema, no princípio, nos moldes da linearidade do texto. Esse princípio, porém, sofreu inúmeras inflexões e transformações ao longo do tempo, tanto no caminho de se buscar sua ausência, quanto no caminho de se alcançar novas maneiras de se desenvolver tal processo, vinculando-o a experiências diversas entre as linguagens e seus hibridismos: sonoros, sonoro-visuais, sonoro-verbais, visuais, verbo-visuais e sonoro-verbo-visuais.
Como Walter Murch esclarece (2001: 52), existem inúmeras maneiras de se montar um filme e, a depender da quantidade de material bruto – tomadas e planos capturados nas filmagens – esse processo acaba sendo tão complexo e laborioso quanto o realizado nas fases de pré-produção e produção. De fato, a fase de montagem na pós-produção, face às circulo-evoluções anteriores, tem a sua dose de autonomia criativa tão crucial e importante quanto as fases predecessoras, pois a maneira de se dispor uma sequência de imagens em movimento interfere na forma como o filme é percebido, mediado e interpretado. Aliás, Kuleshov já havia ressaltado essa problemática nos anos 1920 e ela permanece até hoje. Portanto, como Justin Chang bem destaca, na introdução de seu livro Editing (2011) – dedicado a ouvir o que os montadores têm a dizer sobre o seu ofício – ao pinçar uma declaração de Tim Squyres – editor de Razão e Sensibilidade (1995), Tempestade de Gelo (1997) e O Tigre e o Dragão (2000) todos de Ang Lee –, é que, ao longo do processo de realização fílmica, a montagem é o momento em que a estória a ser contada aparece como um todo (ver CHANG, ibid.: 10). É o momento em que todos os elos – planos, sequências, cenas etc. – são postos em conexão, são integrados e organizados por uma linha narrativa. Sobretudo, é o momento em que o filme realmente se revela e se concretiza, é o momento em que o cineasta assiste ao que o espectador verá
  Uma questão recorrente é que a montagem não teria uma fórmula exata para seu desenvolvimento e articulação, a única restrição seria a questão de colocar o espectador a par da estória que está sendo contada. Entretanto, a maneira como isto se efetua, se imersa na redundância de sentido, se em conflito semântico, ou de forma aberta, exigindo do espectador que interprete da maneira como achar conveniente, fica a cargo de quem produz o filme. Assim, a seleção, a edição e a associação das imagens em movimento é um processo que: (a) ora está vinculado ao material escolhido para se abordar, isto é, é o assunto/objeto que definiria a maneira de se montá-lo; (b) ora é a própria maneira como o diretor/realizador antevê tal assunto e imprime seu traço, ou seja, é a sua personalidade que estabelece e intervém sobre o material, estilizando a montagem, e, de fato, assinando-a; (c) ora é a própria dinâmica estabelecida por um gênero – faroeste, suspense, terror, por exemplo – que estabelece a maneira de se montar as cenas e suas sequências. E, ainda assim, tais “regras”, vinculadas aos gêneros, evoluem ao longo do tempo, já que certos filmes promovem novas dinâmicas e tecem novas relações na edição das imagens em movimento que acabam reformulando-os, reprojetando-os.
Ao longo da história do cinema, a figura que mais se interessou em estabelecer uma reflexão sistemática sobre a montagem foi, sem dúvida, Sergei Eisenstein, que teorizou seis tipos de montagem: (a) a métrica, vinculada à fisicalidade da película, seu comprimento, corte e manipulação em que “(...) a tensão é obtida pelo efeito da aceleração mecânica, ao se encurtarem os fragmentos (...)” (EISENSTEIN, 2002: 79); (b) a rítmica que, com base no conteúdo específico contido dentro dos fragmentos – planos – organiza-se o ritmo da montagem (ibid.: 81); (c) a tonal que, com base no som emocional do conteúdo do fragmento, de sua dominante, a edição de imagens é arranjada. Não se atendo ao tempo lógico dos eventos capturados, mas a um tempo e a uma melodia que se impõem dada a emoção que se deseja enaltecer, sendo medido “impressionisticamente” (ibid.: 82 e 85);  (d) a atonal que contém os mesmos procedimentos da tonal, mas que, entretanto, associa-se à edição de fragmentos dissonantes que colidem entre si, evocando elementos entrópicos que geram ruídos e faíscas, isto é, esta dissonância visa não só ao desconforto, mas ao conflito entre os fragmentos justapostos (ibid.: 84-86); (e) a intelectual que possui todos os procedimentos da métrica, rítmica, tonal e atonal em conjunto. Entretanto este tipo de montagem visa a um “conflito-justaposição de sensações intelectuais associativas”, quer dizer, os elementos contidos nos fragmentos representam ideias, conceitos e teorias e são estas representações – construídas como alusões, metáforas e analogias – que são postas em choque e em conflito. É a dinâmica encontrada no pensamento dialético – tese e antítese – que é posta em ação pela montagem, cabendo ao espectador perceber e mediar esses elementos e chegar a uma síntese (EISENSTEIN, 2002: 86-87).
 Já Walter Murch, montador de filmes como Apocalipse Now (1979) e O Poderoso Chefão (1972), ambos de Francis Ford Coppola, estabelece uma regra de seis princípios básicos para um bom corte ou montagem (MURCH, ibid.: 29): (a) emoção; (b) enredo; (c) ritmo; (d) alvo de imagem; (e) plano bidimensional da tela; (f) espaço tridimensional da ação. Essa hierarquia propõe um princípio organizativo de seleção, escolha e direção, para justapor as imagens em movimento, tendo a emoção como o regente fundamental, de modo a explorar a comunhão das performances da encenação com os enquadramentos em uma sequência narrativa. Isso quer dizer que a montagem pode até inverter, reverter e reorganizar os andamentos dos eventos estabelecidos pelo roteiro, dando-lhes novas possibilidades não previstas pelo roteirista.
Dessa forma, apesar de o roteiro ser o elemento a ser respeitado a todo o momento, em uma produção, é no processo de montagem que se permite que se “reescreva” o filme e é comum retirarem-se cenas inteiras ou mesmo re-filmarem-se novas cenas a partir desta fase. Portanto, a montagem também é um ponto de partida para rearranjos estruturais vinculados ao design da estória. Entretanto, tal fato não significa que tudo possa se resolver na montagem, aliás, uma falácia recorrente vinculada ao processo. Ao contrário, a montagem só evolui, complementa, contribui com o filme, se os outros processos anteriores, atrelados à pré-produção e produção, forem/estiverem muito bem desenvolvidos e dimensionados. De fato, como pode ser observado nos depoimentos de vários montadores entrevistados por Chang e sua equipe, a montagem só é profícua e fértil se tiver um rico material para se trabalhar (ver CHANG, ibid.: 51-52, 82-84, 102-107, 155-159, 168-170, 174-176).
O trabalho do montador inicia-se – Rompimento – quando este recebe o material bruto capturado dos dias de filmagem. A partir disso, em conjunto com seus assistentes, começa a fase de decupagem – Preparação e Incubação – que consiste em assistir a todas as tomadas e planos realizados ao longo das filmagens, checando cada detalhe e já apontando o que ficou bom e o que não ficou. Tal processo permite que o montador conheça o material que tem em mãos e seu fim último é o de organizar a informação: perceber, escolher, selecionar, tecer comentários e dispor os dados referentes ao material bruto em arquivos de texto que são consultados ao longo do processo de montagem. Assim, é a partir desse processo de pesquisa que o montador consegue divisar, antever e projetar essa gama considerável de horas e horas de material captado, dispondo-a para um acesso rápido de busca o que deseja e o que procura ao longo de seu trabalho. 
Como todos os envolvidos na realização do filme, o montador lê o roteiro para que possa compreender a estória como um todo. Entretanto, esta fase de decupagem permite-lhe observar e entender também a maneira como o cineasta aborda cada cena, o que cada subsistema – atuação, direção de fotografia, direção de arte, por exemplo – contribui para cada tomada, e isso influi no trabalho do montador, pois cada elemento, contido nos planos realizados, pode gerar alternativas para se conectar as imagens em movimento produzidas nas filmagens. Quanto mais riqueza, variedade e diversidade de possibilidades em uma cena “bem filmada”, maior a dificuldade e complexidade de montá-la, mas, por outro lado, maior é a probabilidade de se conseguir uma montagem à altura do que foi desenvolvido pelos subsistemas nas fases de pré-produção e produção. E “bem filmada” não significa necessariamente quantidade de planos/tomadas por cena, ou um zelo por enquadramentos regrados a formas convencionadas e padronizadas por uma indústria do entretenimento, mas a qualidade destes em relação ao assunto/objeto abordado. O excesso pelo excesso não produz soluções criativas ao montador, é a acuidade na composição dos planos/tomadas (ver MERCADO, 2011: 01-05) que propicia uma excelente performance da  montagem. Sobre esta questão Alfred Hitchcock é taxativo:

A arrumação das imagens na tela com o intuito de expressar alguma coisa nunca deve ser prejudicada por algum elemento factual. Em nenhum momento. A técnica cinematográfica permite conseguir tudo o que se deseja, realizar todas as imagens que previmos, portanto não há nenhuma razão para se desistir ou para se instalar no compromisso entre a imagem prevista e a imagem obtida. Se nem todos os filmes são rigorosos, é porque há em nossa indústria muita gente que não entende nada de “criação de imagens(TRUFFAUT, 2004: 265).
   
 É durante essa fase – Iluminação e Expansão – que o montador começa a sondar, experimentar e descobrir a forma ideal de se construir a edição do filme em questão. É comum que o cineasta converse muito com o seu montador para exprimir suas impressões sobre cada cena. Alguns diretores têm o costume de montar ou de estar na sala de edição durante todo o processo, porém é comum também que, após transmitir suas ideias e conceitos de abordagem, este diretor deixe o montador trabalhar à vontade com o material captado.
  Na verdade, é durante esse processo inicial, abdutivo, tateante e hipotético, quando o montador encontra-se em um mar de possibilidades de associações possíveis que o filme toma forma. Daí a necessidade de o cineasta estar por perto, pois, como um químico, o montador explora as variáveis e combinatórias entre os elementos contidos nos planos e suas junções/associações. Aos poucos, como se lapidasse um material bruto, o filme acaba se “descobrindo”, como se o montador fosse o responsável por encontrar os fios soltos, dispostos nas tomadas realizadas e, em seguida, conseguisse costurar seus elos a cada cena, a cada sequência de cenas, e, consequentemente, por toda narrativa como um todo. O que se “descobre”, na verdade, é uma fluidez, se transparente, opaca ou múltipla, não importa, o fato é que o filme “escoa” e “transcorre” na sala de montagem como se não houvesse outra maneira de editá-lo a não ser daquela forma e quando isto acontece “é mágico”, segundo Stephen Mirrione (apud CHANG, ibid.: 51), editor de filmes como Traffic (2000) de Steven Soderbergh, de 21 Gramas (2003) e Babel (2006) ambos de Alejandro González Iñarritu.
A fase seguinte – Transição e Verificação – ocorre exatamente depois de se descobrir a maneira de se montar o filme em questão. Geralmente, tal fato acontece a partir da montagem de uma cena crucial ao filme como um todo. Portanto, é a partir desta estética – idealizada e transmitida pelo cineasta – encontrada e estabelecida pelo montador que se restringem as possibilidades de arranjo dos planos de agora em diante. Assim, as dúvidas referentes às variáveis de combinação, comuns à fase anterior, agora se projetam na necessidade de se equalizar uma unidade de edição, isto é, o problema não seria mais o de encontrar uma estética de montagem, mas o de perpetuar sua continuidade e de enfatizá-la ao longo de todo o filme. De fato, novos problemas estabelecem-se nesta fase, entretanto, restrições são cruciais para o entrelaçamento de todos os subsistemas envolvidos na realização fílmica, visando a uma composição narrativa unitária, complexa e autônoma.
Com o filme sendo montado aos poucos, cada cena finalizada é armazenada em locais específicos para ser alvo mais tarde de uma nova sondagem. Esta fase de sondagem – Maturação e Formulação – é pontuada pelo refinamento da montagem das cenas e/ou do conjunto destas. Aqui o que se observa é o andamento das transições entre as cenas, a permanência de uma unidade estética entre, nas e pelas cenas, havendo, portanto, uma sinergia costurando tudo, formando uma estrutura única. É o período dos reajustes, das revisões, das reformulações e das redefinições na edição. Pautado por uma diligente averiguação, realizada tanto pelo montador quanto pelo diretor, o que se busca é chegar ao fim último idealizado pelo cineasta. Quando tal ideal é alcançado, ou mesmo superado, as cenas e seus desdobramentos parecem adquirir vida. Uma autonomia é conquistada para o filme, ao ponto de este conseguir contar uma estória e propiciar um fluxo de interpretações, opiniões e discussões a partir da obra, a chamada semiose. O discurso, outrora idealizado, concretiza-se e permeia todas as relações abordadas, filmadas, tecidas e construídas. Tal fase – Clímax – se constitui no momento em que se constata uma sinergia complexa interatuante entre os enquadramentos justapostos, entre as cenas e sequências, e, consequentemente, por toda a narrativa, e esta constatação é de uma beleza estética surpreendente.


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[1] Seguindo os passos de Jorge Vieira ao adaptar a proposta de Moles com as propostas evolutivas ontológicas de Mende – evolon – é possível compreender melhor em que momento ocorre os processos de abertura e fechamento – a cada subsistema – tão essenciais à nucleação na realização de um filme.