Resumo: O presente relatório foi realizado no âmbito do pós-doutoramento de Marcelo Moreira Santos, feito no CIAC, Centro de Investigação em Artes e Comunicação da UAlg, entre 01 de Agosto de 2016 e 06 Janeiro de 2018. A presente pesquisa visa a analisar o fenômeno transmidiático à luz da semiótica de Charles S. Peirce em conjunção com as teorias sistêmicas desenvolvidas por Edgar Morin, Mário Bunge, Ilya Prigogine e Jorge Albuquerque Vieira.
O que se almejou neste estudo foi: a) Compreender quais as características que consolidam tal processo de desenvolvimento desta nova maneira de se contar histórias por meio de uma rede de mídias distintas e convergentes?; b) Como é e como se articula essa ontologia sistêmica marcada por uma pluralidade de mídias, poéticas e linguagens?; c) E, consequentemente, como se desenvolve seu processo de semiose e comunicação ao interagir com o espectador/leitor/usuário/jogador?
Primeiramente, o que esta pesquisa demonstrou foi que, ao contrário do que boa parte da literatura voltada ao assunto aponta (ver JENKINS, 2009; PHILLIPS, 2012; BERNARDO, 2014; KINDER and MCPHERSON org., 2014; HARVEY, 2016) a Transmídia não é uma narrativa, mas um ecossistema. Do ponto de vista macro, a ecologia hiper-complexa das mídias[1] funciona como uma ‘biosfera’ que engloba essa imensa rede de meios de comunicação. Já as transmídias/franquias funcionam como ecossistemas integrados a esta biosfera, são eco-dependentes desta, pois tanto as mídias quantos seus participantes estão imersos nesse ambiente de hiper-complexidade. Do ponto de vista micro, tais mídias funcionam como ‘espécies’, pois guardam características de linguagem, estética, poética e tecnologia próprias, além de uma memória sistêmica com movimentos artísticos, artistas, obras etc. Por outro lado, seus participantes/fãs funcionam como ‘indivíduos’ que escolhem e são escolhidos (MORIN, 2005, p. 68) pelos ecossistemas/franquias, que a seu turno lhes fornece o jogo lúdico e a fruição estética imersiva que procuram e desejam.
De fato, o ecossistema transmidiático ao mesmo tempo em que se nutre dessa ecologia externa também se fecha internamente em sua própria rede ou sistema. Sua composição – número de meios de comunicação participantes – pode ser feita tanto a partir de três ou quatro mídias, ou, no caso das grandes empresas de entretenimento, por uma vasta e complexa rede de pontos de acesso. Este ecossistema se nutre e explora a ecologia hiper-complexa porque esta lhe oferece as mídias disponíveis e suas possibilidades estéticas, de linguagem e aderência ao público-alvo almejado.
Assim, se por um lado a construção e articulação da Transmídia necessita de uma multiplicidade de poéticas em conformidade às mídias acionadas e às demandas de seu público-alvo. Por outro, no coração de tais poéticas corre uma variabilidade de linguagens: sonoro, visual e verbal; e suas combinações, integrações e remixagens, em histórias em quadrinhos, animações, filmes de longa e/ou curta-metragem, livros, videojogos etc. Essa riqueza de vertentes sígnicas se inter-relacionando no seio desse ecossistema cria uma ecologia comunicativa, ou eco-comunicação (MORIN, 2005, p. 53-56).
Entretanto, no âmbito da mediação de um ecossistema transmidiático, observaram-se as insuficiências e as limitações de um único observador. Assim, similar ao que ocorreu no contexto da física quântica no começo do século XX, no que tange as limitações, dúvidas e questionamentos tanto em relação ao observador quanto aos aparelhos de medição, o ecossistema transmidiático impõe um ambiente de correlações em rede que demandam do fã/engajado uma mediação não mais isolada, mas ecológica.
O coletivo ou fandom floresce na medida em que se percebe que isolados tais fãs não poderiam dar conta de tudo que acontece em tal ecossistema. Entretanto, isso só ocorre porque a obra guarda em si dois vetores importantes: o potencial para que tais comunidades surjam – em ressonância ao universo ficcional desenvolvido – e a tendência para que estas mesmas comunidades sejam alimentadas de novidades, isto é, que se mantenham ronronando, em atividade, em movimento, conferindo-lhes a possibilidade de se manterem, de se auto-sustentarem, para além dos pontos de acesso da franquia.
Por fim, a pesquisa concluiu que o ecossistema transmidiádico é, sobretudo, uma circularidade de linguagens, estéticas, poéticas, mídias e pontos de vista. Uma ecologia de vivências e experiências espaço-temporais divergentes, convergentes, recursivas e retroativas. Assim, ora o espectador/leitor/usuário/jogador está sob o olhar de um personagem em uma mídia/linguagem/poética específica, ora está sob outra perspectiva em uma mídia/linguagem/poética distinta.
Nesse processo, nos afeiçoamos e nos identificamos a um personagem e na trama em que este está envolvido, para logo em seguida saltarmos no tempo e espaço para outro personagem/contexto, tendo a oportunidade de ver a história sob outro ângulo, observando seus motivos e razões, muitas vezes antagônicos ao visto/vivido/experimentado anteriormente em outra narrativa/mídia/poética. Assim, sucessivamente, nos aproximamos e nos afastamos, circulamos por formas de ver o mundo ou mundivências – visão de mundo – díspares, opostas e/ou até similares. Há um jogo dialógico aí em curso, ao mesmo tempo, uma compreensão subjetiva dos personagens e suas tramas, e uma análise objetiva de seus motivos, razões e tomadas de decisões. Sobretudo, tal mundividência ecológica encara os paradoxos e as contradições como seu combustível, dá vazão à formação de uma compreensão complexa (MORIN, 2007, p. 115-116) que ligaria ou religaria pontos de vista antagônicos, concorrentes e complementares dentro de um mesmo universo ficcional.
Tal processo ficou evidente ao se analisar a Transmídia: A Jornada para Star Wars: O Despertar da Força (2015). Com seus diversos títulos em diferentes mídias, a jornada articulou com propriedade essa ecologia de pontos de vista, fugindo das dualidades, e se embrenhando nas contradições e paradoxos de seus personagens, tramas e em toda a historicidade do ecossistema desenvolvido. Por outro lado, tal mundividência ecológica admite um resíduo de inexplicável e é, exatamente, por aquilo que não se sabe é que se renova o interesse à franquia, ao ecossistema. Como se a próxima narrativa/poética/mídia/ponto de vista pudesse descortinar mais e mais os véus da realidade ficcional em voga.
[1] A ecologia das mídias é o contexto atual em que vemos uma pluralidade de mídias convivendo, disputando, conectando, divergindo e convergindo em uma variabilidade de experiências – prosaicas, lúdicas, econômicas, lógicas (MORIN, 2007, p. 141) – integrando-as à vida cotidiana.
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