O filme é uma criação da
coletividade.
Walter
Benjamin
A realização de um filme
implica a integração e interação de um conjunto de agentes especializados em
áreas nas quais, em outras artes, aparecem como dominantes, mas que, no caso do
cinema, são co-participantes. O que Riccioto Canudo havia previsto como o mito
da arte total ao se referir ao cinema (STAM, 2003: 43) torna-se palpável nos sets
de filmagem em que artistas de diferentes formações são unidos no
desenvolvimento de uma obra complexa.
O fato de o cineasta tomar as
decisões cruciais na realização do filme não tira a co-autoria dos outros
agentes nem o caráter poético de suas funções no que tange à confecção do
filme. Seguindo essa perspectiva, o que se constata é que essas interações
(MORIN, 2008: 105) que compõem e moldam a realização de um filme configuram-se
como sistêmicas, isto é, há um conjunto de agentes semióticos com funções
específicas que interagem e se integram na realização da obra.
Esta
interação entre agentes especializados e sua integração imersa à produção de um
filme forma uma organização ativa – sistema – cuja matriz processual é forjada
pelo jogo multiforme e relativo entre diversidade, variedade, antagonismo, desvio,
ruptura, equilíbrio, ordem e desordem. Assim, uma visão holística
simplificadora de que um filme seja um todo harmônico é aqui posta em xeque
logo de início. Porque “(...) a ideia de sistema não é apenas harmonia,
funcionalidade, síntese superior; ela traz em si, necessariamente, a
dissonância, a oposição, o antagonismo” (MORIN, ibid.: 154).
Assim,
um filme não é assinado apenas por um autor, mas por um conjunto de autores,
cujas especialidades complementam-se, coadunam-se e retroagem em um policircuito
recursivo (MORIN, ibid.: 231), cuja dinâmica opera em torno de concessões,
cooperações e associações entre as competências participantes. De fato, essa
unidade complexa do cinema depende de uma eco-organização (MORIN, 2005: 35-42),
cuja dimensão comporta uma natureza temporal, isto é, uma organização que se dá
no tempo (VIEIRA, 2008: 93) e cuja lógica gira em torno de processos temporais,
que por sua vez comportam transformações, flutuações e intersemioses.
Segundo Vieira (ibid.: 89), existem três
parâmetros classificatórios fundamentais para se observar um sistema: sua
capacidade de permanência, seu meio ambiente e sua autonomia. Ainda dentro
dessa perspectiva, para um sistema consolidar-se como tal, existem parâmetros
chamados hierárquicos ou evolutivos, isto é, dependentes do fator tempo para se
estabelecer, delineados da seguinte forma: composição, conectividade,
estrutura, integralidade, funcionalidade e organização, todos permeados por um
parâmetro que pode surgir desde o primeiro estágio: a complexidade. Assim, um
sistema é caracterizado por seu processo temporal e sua capacidade de
crescimento e desenvolvimento. A complexidade de tal movimento temporal se dá
pela diversidade de conexões que são realizadas em prol da sobrevivência do
sistema.
No caso do cinema, um
processo similar pode ser visto na realização e produção de um filme. Dada a
necessidade desses agentes especializados, que são postos em conjunto para
trabalharem em prol da realização de uma obra cinematográfica, o que há nesse
ambiente é um processo temporal que demanda evoluir por cada parâmetro
hierárquico apontado anteriormente. Este reflete-se na capacidade de
permanência, isto é, na capacidade de se atingir uma regularidade – redundância
(VIEIRA, ibid.: 92) – na construção fílmica, que pode ser constatado no filme
finalizado. Pois, um filme não é feito de forma linear, mas por partes que se
juntam na fase de pós-produção e finalização. Assim, ao fim e ao cabo, um filme
tem que apresentar uma autonomia, em que tudo se conecta de forma coesa e
coerente: direção de arte, direção de fotografia, cenografia, figurino,
roteiro, direção, planos, montagem etc.
Aliás, os parâmetros de
coesão e coerência são também parâmetros de consolidação de um sistema. A
coesão lida com a sintaxe entre elementos, sua articulação e efetividade. A
coerência lida com a semântica que se desenvolve em prol de uma dialogia
intersemiótica entre esses elementos para a construção de sentido entre os
mesmos, em um todo integrado, complexo e significativo.
O que se observa é que há, em
graus maiores ou menores, o risco de essa combinação entre agentes e
especialidades entrar em processo de entropia (MORIN, ibid.: 94), perdendo a coesão sintática e a coerência semântica,
prejudicando as interfaces e intercâmbios intersemióticos entre suas várias
camadas de significação. Essas camadas de significação são cunhadas e
entrelaçadas pela integralidade e organização da direção de fotografia, direção
de arte, figurino, cenografia, trilha sonora, roteiro, direção etc., dentro de
um todo complexo, o filme.
De fato, a riqueza
organizacional de um sistema é medida pela sua diversidade e variedade, pois
sua lógica é pautada pela transformação, geração e produção, ou como Morin
destaca: as interações e associações – entre essas áreas distintas inerentes ao
processo de realização cinematográfica – “se entreproduzem” (MORIN, ibid.: 202). Assim, o efeito
da entropia seria o de uma homogeneização do sistema, a perda do múltiplo e da
diferença. Portanto, o colapso do sistema, pois a “organização de um sistema é
a organização da diferença” (MORIN, ibid.:
149).
Portanto, ao fim, a poética
desenvolvida no cinema é confeccionada nesse jogo ontológico sistêmico das
interações entre agentes semióticos responsáveis por comporem um todo múltiplo
e cooperativo (MORIN, ibid.:
147). Assim, cada agente, em sua especialidade, é responsável por um fragmento
sígnico que passa pelo crivo de sua criação, desenvolvimento e produção. Esse
fragmento tem que: a) conectar-se; b) traçar relações; c) estruturar-se, isto
é, estabelecer e fortalecer essas relações intersemióticas – de troca – ao
longo do período de realização fílmica; d) integrar-se a outras partes sígnicas
em um processo de complementaridade; e) cumprir uma função, visando uma
cooperação mútua e interdependente; f) e corporificar-se em uma organização (ou
organicidade) coesa o suficiente que consiga desenvolver uma regularidade
pragmática durante todo o processo de realização do filme. De fato, uma
fotografia, um figurino, uma direção de arte, por exemplo, integram-se e tomam
corpo pela complexidade com que dialogam entre si, pelas interfaces e
intercâmbios sígnicos que são capazes de realizar e, principalmente, manter e
entreproduzir, portanto, transformar (MORIN, ibid.: 148).
Referências:
MORIN, Edgar. O Método 1 – a natureza da natureza.
Porto Alegre: Editora Sulina, 2008.
_____________ O Método 2 – a vida da vida. Porto
Alegre: Editora Sulina, 2005.
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema.
Campinas: Papirus Editora, 2000.
VIEIRA, Jorge de Albuquerque. Ciência – Formas de Conhecimento:
Arte e Ciência uma visão a partir da complexidade. Fortaleza: Gráfica e
Editora, 2007.
__________________________ Teoria do conhecimento e arte
– Formas de Conhecimento: Arte e Ciência uma visão a partir da complexidade. 2°
edição. Fortaleza: Gráfica e Editora,, 2008.
__________________________ Ontologia – Formas de
Conhecimento: Arte e Ciência uma visão a partir da complexidade. Fortaleza:
Expressão Gráfica e Editora, 2008.
Trecho resumido e retirado da Tese "Poética Fílmica - o exemplo de Alfred Hitchcock", pág. 61-70, 2012. Tese publicada na Biblioteca Sapientia: http://www.sapientia.pucsp.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=15227